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Mar Verde

"Mar Verde": os segredos da operação, Conacri 1970, 1° episódio

 “Mar Verde” foi o nome de código de uma operação secreta que o regime colonial português levou a cabo em Conacri a 22 de Novembro de 1970.A RFI levou a cabo uma investigação declinada em três episódios sobre essa noite lendária na capital da jovem República da Guiné.

Livro branco sobre a operação "Mar Verde" a 22 de Novembro de 1970.
Livro branco sobre a operação "Mar Verde" a 22 de Novembro de 1970. © Carole Valade/RFI
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A “Agressão portuguesa”, como o episódio é conhecido na República da Guiné, até hoje não foi reconhecida por Lisboa, não obstante as provas recolhidas no terreno por uma missão da Organização das Nações Unidas.

O triângulo Lisboa/Bissau/Conacri

A invasão relâmpago da capital da antiga Guiné francesa por seis navios de guerra portugueses não permitiu nem o derrube do regime de Sékou Touré, nem aniquilar a base de retaguarda de que ali dispunha o PAIGC (Partido africano para a independência da Guiné e Cabo Verde), que batalhava pela independência daquela que se viria a tornar na Guiné-Bissau.

No entanto ela mexeu em muito com os equilíbrios da altura!  E isto ao intensificar os apoios internacionais de que beneficiava o movimento de Amílcar Cabral, nomeadamente do bloco soviético e aliados.

O PAIGC vai poder adquirir armamento ainda mais sofisticado contra o periclitante exército português, a braços com duas outras frentes de guerra, em territórios de muito maior dimensão, Angola e Moçambique.

Portugal, com o desaire da operação “Mar Verde”, fica num isolamento, ainda maior, à escala internacional do que aquele que conhecera António de Oliveira Salazar e a sua política de “Orgulhosamente sós”.

O contexto da operação

O império português começara a desmoronar-se desde a queda dos territórios de Goa, Damão e Diu, em 1961 para a União Indiana.

O seu sucessor, na liderança do governo de Lisboa, Marcello Caetano, dará provas, porém, da mesma intransigência quanto a admitir qualquer solução negociada visando a emancipação dos territórios africanos ou asiáticos sob sua tutela.

Spínola e o fim da colonização portuguesa

A situação militar na então Guiné portuguesa vai traduzir-se em ataques de maior vulto do PAIGC contra alvos do poder colonial, com uma guerrilha cada vez mais activa num terreno cujo controlo escapa, em larga escala, a Lisboa.

Nem a política “Por uma Guiné melhor” do general António Spínola, conseguirá inverter a tendência.

O governador luso nunca conseguirá que as suas apostas na diplomacia secreta, tanto com o Senegal, como com o PAIGC, tenham a aprovação de Lisboa.

O homem do monóculo acabará por deixar a futura Guiné-Bissau, a 8 de Agosto de 1973, menos de dois meses antes da proclamação unilateral da independência pelo PAIGC em Madina do Boé.

As consequências:

- O precipitar das independências

As tropas portuguesas estavam à beira do “colapso militar”, um cenário que ele denunciava e que terá pesado na concretização da “Revolução dos cravos”, meses depois, em Lisboa, selando o desmantelamento do império luso com o acesso à democratização do regime.

Daí a independência da Guiné-Bissau ser a primeira a ser reconhecida solenemente por Portugal, no caso pelo mesmo general Spínola, a 10 de Setembro de 1974, entretanto proclamado presidente da república.

Os demais 4 territórios africanos sob administração portuguesa (Angola, Cabo Verde, Moçambique e São Tomé e Príncipe) ascendem à independência no ano seguinte, ano em que Portugal deixa também Timor Leste.

Macau será, porém, o derradeiro território asiático a deixar a tutela portuguesa ao passar, em 1999, para soberania chinesa.

- A repressão do regime de Sékou Touré

Para o regime de Sékou Touré a “Agressão portuguesa” vai ser o mote para uma duríssima repressão contra quaisquer vozes críticas do homem forte da Guiné.

O cemitério Nongo, da capital, testemunha das muitas execuções que acabaram por ter lugar no tão mal famado Campo Boiro.

No entanto o primeiro presidente da Guiné tinha granjeado obter um estatuto lendário, numa África em emancipação, ao ter declarado, logo em 1958 em Conacri, ao general francês de Gaulle, “preferir a pobreza na liberdade à riqueza na escravatura”, rejeitando o projecto de “Comunidade francesa”.

A repressão já vinha do início da década de 60 na Guiné, Sékou Touré tendo denunciado complôs contra ele incluindo com a participação de forças francesas, desde 1959, um ano apenas após a independência do país.

A “Agressão portuguesa” estará na origem de uma purga jamais vista ! 1971 tendo ficado na memória como dos mais sombrios de sempre, logo em Janeiro tendo começado os enforcamentos públicos.

 

Perante a violência imperialista, o povo contrapôs de forma vitoriosa a violência revolucionária através de uma firmeza intransigente e de uma coragem determinada.

Pode ler-se no Monumento aos mártires de 22 de Novembro de 1970 em Conacri.

A RFI em Português levou a cabo uma investigação que permitisse levantar um pouco o véu sobre uma noite lendária na história da capital da jovem República da Guiné.

E isto tendo como base, para além de documentos de arquivo, de alguns trabalhos anteriores alusivos da RFI, tanto em português, como em francês, de Carol Valade e de Laurent Correau.

Porém este trabalho articulou-se, sobretudo, em torno das entrevistas realizadas ao comandante português de mar e guerra Costa Correia que chefiou uma das seis embarcações lusas na operação, e a Ana Maria Cabral, viúva do líder do PAIGC. Um e outro foram testemunhas, em lados opostos, dos acontecimentos de Conacri.

Uma operação com mais de meio século que mereceu desde 2014 uma obra de Bilguissa Diallo em França, entretanto reeditada em 2021.

Nesse mesmo ano, mas em Portugal uma outra obra alusiva foi lançada.

“Ataque a Conakry: história de um golpe falhado” de José Matos e Mário Matos Lemos.

José Matos que partilhou connosco as revelações a que chegou no decurso da sua investigação.

Este foi, pois, o quadro da série de três episódios que realizámos, com difusão na RFI em Português em 2021, cujo texto aqui anexamos.

1° Episódio: Operação Mar Verde/Conacri 1970: uma estranha aliança !

A RFI começa aqui uma série de reportagens sobre a Operação Mar Verde.

Mar Verde foi o nome de código de uma operação secreta levada a cabo pelas forças portuguesas contra o poder da Guiné Conacri a 22 de Novembro de 1970 e que conta, pois, com pouco mais de meio século.

Começamos aqui por tentar penetrar nas redes tecidas entre Portugal e a Guiné Conacri para consumar o plano.

Em foco, antes de mais, a vertente relativa à Guiné Conacri.

Esta foi uma operação lendária,  que foi alvo da publicação recente de dois novos livros, aliás, um em França de Bilguissa Diallo, outro em Portugal de José Matos.

Este último, autor do livro “Ataque a Conakry: história de um golpe falhado”, publicado pela editora Fronteira do Caos,  alega que esta é uma operação ímpar.

A Mar Verde é, no contexto da Guerra de África, uma operação única.

 

 “A Mar Verde é, no contexto da Guerra de África, uma operação única porque é a única vez, na longa História da guerra, que Portugal invade um país vizinho. Neste caso a capital de um país vizinho, com um objectivo estratégico em mente. Não era o único, mas era, digamos, o objectivo mais importante que é promover um golpe de Estado, e tentar substituir o regime que existia nesse país. Neste caso na República da Guiné, liderada pelo presidente Sékou Touré. E portanto esta operação é também uma operação lendária e é uma operação que, no contexto daquela guerra, não tem outra igual noutro sÍtio. Nem em Angola, nem em Moçambique aconteceu algo de parecido, com uma operação desta dimensão e com este tipo de características! “

José Matos, que é um investigador português em História militar e autor de uma série de obras, inclusive em inglês, sobre as guerras do antigo Ultramar português em Angola e Moçambique, e, sobretudo, na actual Guiné-Bissau.

Ele que colaborou também com Bilguissa Diallo, antiga jornalista em França,  que acaba de publicar junto da editora L’Harmattan o livro “Guinée, 22 novembre 1970, opération Mar Verde”.

Bilguissa Diallo, em entrevista a Laurent Correau, acerca da Operação Mar Verde, descartava o facto de que os opositores da Guiné Conacri, que nela participaram, estivessem a soldo do regime colonial português.

A autora acaba de editar uma nova edição de um livro sobre o caso.

Eram pessoas que gostavam do seu país e que não estavam de todo à mercê nem do neo-colonialismo nem do imperialismo.”

Ela que é também a filha de Ibrahima Thierno Diallo, mentor de um partido de dissidentes guineenses.

A FLGN, Frente de libertação nacional da Guiné, que esteve por detrás deste golpe com o regime português.

Se o golpe tivesse sido bem sucedido, com o derrube do presidente Sékou Touré, da Guiné, vigente desde 1958, seria Diallo a suceder-lhe no cargo.

Ibrahima Thierno Diallo, num registo de arquivo da RTP, Rádio e televisão de Portugal, compilado, como os demais neste trabalho, por Carol Valade, explicava que o seu combate se prendia com a defesa da liberdade do seu país e denunciava de forma contundente o regime de Sékou Touré.

No que diz respeito à causa pela qual me bato, junto da Frente de libertação nacional, luto para que todos os cidadãos da Guiné possam viver livremente, dentro do meu país. E queremos demolir a ditadura de Sékou [Touré], queremos demolir esta ditadura desumana e satânica. Queremos estabelecer uma democracia real à escala do nosso país.

Bilguissa Diallo, a autora de dois livros em França, sobre esta operação levada a cabo por Portugal, com a participação activa de opositores ao regime de Sékou Touré, explica quem foram os autores daquela que na Guiné Conacri passou a ser conhecida em 1970 como a “Agressão portuguesa”.

Uma parte destes homens eram dissidentes guineenses, outra parte eram militares portugueses e afro-portugueses. Na altura Portugal estava em guerra contra a rebelião do PAIGC e o comando do PAIGC estava implantado em Conacri.”

Alpoim Calvão, capitão de mar e guerra, foi o estratega da operação a partir de território da então Guiné portuguesa.

Ele conta como é que a FLNG se juntou a uma operação de Lisboa visando, sobretudo, beliscar a base de retaguarda do PAIGC, Partido africano para a independência da Guiné e Cabo Verde, activo a partir da Guiné Conacri.

Na altura foi-me dado conhecimento de que havia um grupo de exilados guineenses, que constituíam a Frente nacional de libertação da Guiné, que já estavam em contacto com o governo português há bastante tempo, e que pediam o apoio para fazer uma acção militar contra o Sékou Touré. Íamos fazer uma operação numa tentativa de golpe de Estado à qual demos treino e armamento.

No entanto, durante anos, Portugal faz orelhas moucas aos contactos dos opositores a Sékou Touré, revelações que constam do livro de José Matos !

Nós constatamos, pelos documentos consultados, que, desde os primeiros contactos em 1966, e que são contactos que são estabelecidos até com autoridades da Guiné portuguesa, na altura, em Bissau… Há uma grande reserva das autoridades portuguesas e até do governo português, nomeadamente do Ministério dos negócios estrangeiros, que estava mais… e do Ultramar também, relativamente à verdadeira capacidade do “Front” [da Frente] fazer uma acção bem sucedida contra o presidente Sékou Touré. Constatamos depois que, em 1969, há uma mudança de opinião. Ou seja, de repente, nós constatamos que aquelas reservas que existiam, quanto a um apoio desse movimento, mudam. E há de facto, claramente, um apoio que chega à operação Mar Verde.”

Como é que foram estabelecidos estes contactos até Lisboa se deixar convencer pela FLNG para tentar, simultaneamente, neutralizar o PAIGC, para se procurar inverter o curso da guerra na então Guiné portuguesa ?

Um dos actores deste ataque numa noite de sábado de Novembro de 1970 a Conacri foi o comandante português de mar e guerra Costa Correia.

Ele comandava uma das seis embarcações que invadiram a capital da República da Guiné e conta como decorreram os preparativos desta operação.

A ideia terá surgido, talvez em 1968, aproximadamente. Foi, depois, sendo preparada com algumas incursões: viagens de alguns navios de guerra portugueses, a recolher opositores da FLNG , ou também outros… mas, de qualquer maneira, sob o chapéu da FLNG. E, transportá-los, então, para a Ilha de Soga, na então colónia da Guiné-Bissau, para receberem alguma formação, adestramento, equipamento, material, etc. E isso já num prazo relativamente mais curto, antes de Novembro de 1970. Houve duas fases: uma fase de preparação e concepção da operação, outra preparação dos elementos necessários. Dos quais era muito importante para o desencadear da operação a colaboração da FLNG e, depois, na parte imediatamente anterior, talvez dois ou três meses,  a reunião do material, os equipamentos, tudo isso… Conjuntamente, talvez, com dois meses de preparação do pessoal recrutado para a operação.”

Lisboa, na altura, lutava em três frentes simultâneas: Angola, Moçambique e Guiné para manter os seus territórios ultramarinos em África, não obstante a queda dos territórios de Goa, Damão e Diu, recuperados em 1961 pela Índia.

No entanto é este mesmo regime que consegue como aliado a FLNG apostada no derrube do regime de Sékou Touré.

Como se organizavam os opositores ao senhor todo poderoso de Conacri ? Eis as respostas de novo com Bilguissa Diallo:

A FLNG é um partido que se compunha, na realidade, de quadros da diápora guineense radicados, na sua maioria em Dacar, mas também em Abidjã, alguns dentre eles em Paris. Eles organizam-se, pois, a partir dos países limítrofes. “

José Matos comenta o perfil daquele que pretendia assumir a chefia do poder em Conacri derrubando o emblemático Sékou Touré.

Touré que, recorde-se, foi o único que em África disse “não” ao general francês de Gaulle que propunha uma comunidade franco-africana, precipitando a independência da Guiné francófona em 1958.

O comandante Diallo, pai da Bilguissa, de facto, era um homem que tinha, relativamente ao seu país, uma grande vontade de mudança. Era um homem que, de facto, detestava o regime do presidente Sékou Touré, e era um homem que queria mudar o regime a qualquer custo !  E daí que chega ao ponto de se envolver na operação:, foi a Conacri nessa madrugada, nessa noite, tentar esse sonho, no fundo ! Quer dizer tentar mudar o regime, neste caso, pela força, mas tentar, de facto, mudar. E é interessante que o comandante Diallo, no final da operação, publica um relatório, aliás que também vem referido no livro, em que ele se mostra disponível para voltar, novamente, a Conacri, numa outra operação. Ou seja diria que era um idealista, como é óbvio, mas era, de facto, um homem muito interessado no seu país e que detestava a ditadura que existia no seu país.”

O comandante Costa Correia conta-nos qual a estrutura que a FLNG preparara para tentar derrubar o regime de Conacri e os respectivos calcanhares de Aquiles nesta operação tecida em conluio com Lisboa.

Na prática o que se viu é que o conjunto de opositores da Guiné Conacri ao regime de Sékou Touré que iam embarcados… iam embarcados, aliás, a maioria no meu navio: a Lancha de desembarque grande Montante. Eu levava a bordo o coronel Thierno Diallo, o doutor Hassan Assad e o jornalista, doutor Saïdou Diallo.  O coronel Thierno Diallo seria quem substituiria Sékou Touré, Hassan Assad seria o primeiro-ministro e Saïdou Diallo seria o estratega, digamos assim, com um posto teórico de ministro da informação. Mas eram apenas três pessoas ! O pessoal que seguiu eram cerca de cinquenta ! Ora bem era evidente que ou haveria uma rede já constituída e pronta a apresentar uma solução alternativa, ou era relativamente pouco pessoal, e com perfil não suficientemente consistente para tomar conta do poder. E, assim, terá havido uma certa super-avaliação ou hiper-avaliação dos recursos que estariam à disposição para que essa operação tivesse êxito.”

Este foi o primeiro episódio desta série consagrada à Operação Mar Verde e aos muitos mistérios que meio século ela continua a encerrar ao largo da costa ocidental africana, entre as actuais Guiné-Bissau e a República da Guiné.

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