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História

Cabral 1973, assassínio em Conacri [3/3]: destronar o senhor da Guiné ?

Há cinquenta anos, a 20 de Janeiro de 1973, era assassinado o líder nacionalista Amílcar Cabral, em frente à sua casa baleado por militantes do PAIGC. Este assassínio, porém, não dita o fim da História: nos meses que seguiram ao funeral de Cabral, os serviços franceses e portugueses tentam criar um plano para derrubar Ahmed Sékou Touré. A operação fica conhecida como "Safira". Porém, a Revolução dos Cravos em Portugal, impede que este plano fosse lançado.

Ahmed Sékou Touré, presidente da Guiné Conacri, em uniforme, após a operação "Mar Verde" ("A agressão portuguesa") el 1970.
Ahmed Sékou Touré, presidente da Guiné Conacri, em uniforme, após a operação "Mar Verde" ("A agressão portuguesa") el 1970. © KHP
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A morte de Amílcar Cabral continua envolta numa zona de sombra, ainda que se saiba quem disparou o primeiro tiro. A RFI quis tentar perceber os bastidores e a teia de influências políticas que levaram ao seu assassínio. Miguel Martins, co-autor da investigação, fala-nos de algumas das conclusões nesta entrevista.

18:31

O que se sabe sobre a morte de Amílcar Cabral

Para  assinalar o dia 1 de Fevereiro de 1973, dia do funeral nacional de Amílcar Cabral, Ahmed Sékou Touré decidiu, como fazia por vezes, redigir um poema. “Onde estão eles ? / Os grandes soldados do Progresso, / Os gigantes da grande luta / Gerados pela coragem consciente / E gerando a consciência da coragem?". O texto intitulado "Onde eles estão?". É dedicado “a todos os mártires do colonialismo”. "Cabral e Mondlane / N'Krumah e Lumumba / Em nós e depois de nós / Sempre honrados, viverão / A Revolução chegará aos céus!"[1]

Após o assassínio, os relatórios dos serviços portugueses dão conta de que o dirigente guineense tinha reforçado a sua posição no PAIGC. Nos meses que seguiram ao assassínio do líder independentista guineense e cabo-verdiano, surge uma nova operação. Desta vez, a operação visa derrubar o regime de Sékou Touré e fica conhecida como "Safira" .

A operação é tornada pública meses depois de ter sido abandonada, mas ganhou mediatismo na imprensa portuguesa: O jornal Expresso, na sua edição de 24 de Janeiro de 1976, publicou relatórios internos da DGS, entidade que sucedeu em 1969, à PIDE , a polícia política do regime ditatorial português.

Operação 'Safira' tenta ressuscitar Operação "Mar Verde" [2], escreve o jornal, referindo-se ao ataque abortado de Novembro de 1970 em Conacri. O novo plano prevê um jogo de manipulação complexo que visa fomentar divisões dentro do PAIGC, na esperança de enfraquecer o Presidente guineense Ahmed Sekou Touré e permitir uma nova operação dos opositores guineenses exilados da FLNG (Frente de Libertação Nacional da Guiné [Conacri]).

Uma aliança entre contestatários do PAIGC e a oposição guineense em exílio

Primeira etapa da operação: exacerbar as tensões no seio do PAIGC, quer se trate das clivagens entre os mulatos cabo-verdianos e os negros da Guiné-Bissau ou a existência de duas tendências ideológicas. Uma delas é “comunista, ou pró Sékou Touré” e, do outro, “a dos pró ocidentais ou anti- Sékou Touré”, será esta “facção dissidente que pretende levar a efeito um golpe de Estado dentro do PAIGC”.

Nos relatórios da DGS, revelado pelo “Expresso”, os serviços de informações portugueses afirmaram que um grupo da Guiné-Bissau, da vertente africana,  “conscientes de que o PAIGC é um instrumento dos cabo-verdianos manobrado por Sékou Touré”.

O “Expresso” também revelou os relatórios das missões de dois agentes infiltrados no seio do PAIGC. Um deles, com o nome de código Padre, encontrou-se mesmo com Samba Djaló, responsável da segurança do PAIGC pela região Norte, a 23 de Agosto 1973. O encontro aconteceu em território senegalês onde Djaló estava baseado. Este membro do PAIGC parece manipulável. Segundo o jornal, ele terá dito ao agente que trabalhava para Portugal que Aristides Pereira, o novo chefe do PAIGC, "não está à altura do seu cargo, não passando de um fantoche manobrado por Sékou Touré que é quem toma todas as decisões importantes ”.

Segunda etapa da operação: os opositores da FLNG (Frente Nacional da Libertação da Guiné [Conacri]), que tinham sido integrados na operação Mar Verde, devem agora contactar os dissidentes do PAIGC tendo em vista uma acção comum com Conacri prevista para “o fim de Junho, início de Julho" [de 1974, NdR]. O Coronel Thierno Diallo, um dos chefes desta oposição no exílio, é o primeiro apontado para suceder a Sékou Touré.

Um plano elaborado "com franceses do SDECE"

Ficamos a saber no semanário Expresso que se trata de um plano cujas “grandes linhas de acção" teriam sido traçadas com os franceses da "SDECE” [Documentação externa e serviço de contra-espionagem, Nota da Redacção]. Nos referidos documentos encontram-se relatórios da DGS de Bissau, que chegaram a Lisboa a 5 de Novembro de 1973, foram revistos para depois serem enviados para Paris. Os documentos descrevem os pormenores para preparar a operação.

Os documentos eram dirigidos a "um tal Koch da SDECE e ao coronel Lacase, director dos serviços de informação do mesmo organismo". Lacase? Sem dúvida, o coronel Jeannou Lacaze. Koch? Durante muito tempo, esse foi a alcunha de Jacques Foccart.

Sinal de que existiam ligações internacionais nesta operação, o plano beneficia, segundo os documentos do Expresso, de investimentos financeiros "brasileiros e europeus", recebendo ainda "ajuda de países vizinhos"[3] da República da Guiné, "navegando na órbita da França".

Ficamos a saber pelas notas desvendadas da DGS que "decorreram na Europa negociações entre portugueses, franceses, brasileiros, senegaleses e outros a nível de serviços secretos".

"Também Alpoim Calvão", [estratega da primeira invasão de Conacri, NdR], estaria novamente no comando e "esteve nos contactos na Europa, nomeadamente com [Thierno] Diallo e  com o SDECE". Os serviços secretos franceses "acordaram que corressem por sua conta, como até aqui o têm feito, as despesas com contactos e estadias em França dos elementos envolvidos na operação". À SDECE coube ainda "organizar ainda em Fevereiro [de 1974] uma reunião em Bruxelas" com representantes do grupo brasileiro (nós) [DGS], um representante do grupo financeiro europeu (serviços franceses), Diallo e um adjunto" entre outros.

O Expresso revela ainda a existência de um relatório redigido em francês, datado de 4 de Janeiro de 1974. Calvão, presumivelmente, ter-se-ia deslocado até um país africano vizinho da República da Guiné onde teria obtido várias garantias para avançar com a operação contra Sékou Touré: material, pessoal, campo de treino, sistema de ligações rádio, mas também "o estacionamento de um avião para transportar a equipa dirigente a Conacri após o sucesso do ataque nocturno".

A preparação da operação estaria quase terminada: a operação deve acontecer em Junho. “Com a estação das chuvas em Julho, aumento dos riscos se os preparativos se atrasam". Tudo deveria começar com "uma reunião noutro país africano” com, nomeadamente, opositores da República da Guiné, dissidentes do PAIGC e outras individualidades, e na presença verosímil de Calvão.

A Revolução dos Cravos, a 25 de Abril de 1974 em Lisboa, pôs fim ao regime autoritário português e permitiu, por fim, a abertura de negociações rumo à descolonização africana. Segundo Faigot, Guisnel e Kauffer, a revolução surpreendeu em Paris Agostinho Barbieri Cardoso, chefe dos assuntos africanos da polícia secreta portuguesa, que se deslocara à capital francesa "para finalizar a Operação Safira com Alexandre de Marenches [director-geral da SDECE, Nota da Redacção]”[4].

Cardoso foi então, segundo estes autores, autorizado a "ficar em França" enquanto se prepara uma operação para recuperar arquivos sensíveis em Lisboa para os franceses. Uma vez que existiam provas de cooperação desde 1962" entre os dois serviços secretos, envolvendo "a oposição portuguesa e os movimentos africanos que também eram vigiados a partir de Paris". A revolução portuguesa foi um golpe brutal nos preparativos da Operação “Safira”.

Uma colaboração demonstrada pelos arquivos

As fontes faltam para aprofundar o que sabemos sobre esta operação. A dupla página no “Expresso” é citada pela maior parte dos autores. Os trabalhos do historiador Vitor Pereira, sem mencionar Safira, destacam as ligações que existiram na época entre os serviços franceses e portugueses. “A colaboração entre a PIDE e o SDECE é reforçada por interesses comuns que possuíam estes dois serviços em África”, escreve Pereira, “Ambos lutam contra o perigo comunista e mostram-se desconfiados quanto à presença dos Estados Unidos no continente”.

O trabalho de pesquisa nos arquivos realizado por este investigador permite supor que os contactos começaram em 1957: “Ao constar que os Estados Unidos apoiam os movimentos nacionalistas africanos, as agências de informações dos dois impérios coloniais que querem resistir à descolonização (de forma total ou parcial) tendem a aproximar-se. Até 1962, a colaboração entre as duas agências inscreve-se no combate destas suas potências coloniais contra os movimentos nacionalistas independentistas que recebem um apoio do bloco comunista”.

O SDECE, explica Pereira, recebe da PIDE-DGS informações sobe os projectos comunistas em África e apoia de volta, discretamente, as acções contra os regimes considerados hostis – como o da Guiné-Conacri – ao fornecer armas e informações. Sinal desta intensa colaboração, entre 1957 e 1974, o SDECE envia 2.101 documentos à PIDE-DGS.

Jacques Foccart, segundo o investigador, tem um papel importante nesta ligação entre os dois serviços. O trabalho nos dossiers africanos de interesse comum começou com o apoio ao secessionista do Katanga, Moïse Tshombé. Ele prosseguiu, como explica Pereira, à volta do dossier do Biafra. O que se terão dito os dois serviços sobre a morte de Cabral? Continua a ser um mistério.


[1] SEKOU TOURE Ahmed, Poèmes militants, Imprimerie Patrice Lumumba, Conakry, 1977, Pp 137-143

[2] « PIDE e SEDEC teriam elaborado as linhas de acção”, Journal Expresso, 24 janvier 1976, p14.

[3] O Senegal e a Costa do Marfim de acordo com SOARES SOUSA Julião, Amílcar Cabral (1924-1973) Vida e morte de um revolucionário africano, Coimbra, edição do autor, p 567.

[4] FALIGOT Roger/GUISNEL Jean/KAUFFER Rémi, Histoire politique des services secrets français, Paris, La Découverte, 2012, pp 331-332

[5] PEREIRA Victor, La dictature de Salazar face à l’émigration. L’Etat portugais et ses migrants en France (1957-1974), Paris, Presse de Sciences Po, 2012

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