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Vida em França

Homenagem a Gisèle Halimi: Macron anunciou a constitucionalização da IVG

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Emmanuel Macron homenageou esta quarta-feira, 08 de Março de 2023, dia Internacional da Mulher, Gisèle Halimi. O chefe de Estado francês aproveitou o momento para abordar a constitucionalização da IVG, um dos combates da advogada feminista, falecida a 28 de Julho de 2020.

A advogada e activista feminista Gisèle Halimi foi homenageada esta quarta-feira, 08 Março de 2023.
A advogada e activista feminista Gisèle Halimi foi homenageada esta quarta-feira, 08 Março de 2023. AFP - ABDELHAK SENNA
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Emmanuel Macron homenageou esta quarta-feira, 08 de Março de 2023, dia Internacional da Mulher, Gisèle Halimi. O presidente de França aproveitou o momento para abordar a constitucionalização da IVG, um dos combates da advogada feminista. Macron disse querer “gravar a liberdade das mulheres de recorrer à interrupção voluntária da gravidez” na Constituição. Para o efeito, anunciou um projecto de lei constitucional “para os próximos meses”.

A homenagem nacional do presidente francês à advogada e activista feminista, falecida a 28 de Julho de 2020, aos 93 anos de idade, não é de todo consensual.

De um lado, a República francesa, na figura do seu presidente a lembrar, no Palácio da Justiça, a mulher, o percurso, os combates e a dívida que a França tem para com Gisèle Halimi, nomeadamente no combate contra a colonização e a guerra da Argélia, no combate contra a pena de morte, na luta pela legalização da Interrupção Voluntária da Gravidez e no combate pela despenalização da homossexualidade. 

Do outro, um dos filhos da advogada, Serge Halimi, que recusou integrar este processo. Para o segundo filho da activista, “o país está mobilizado contra uma reforma das pensões extremamente injusta, cujas mulheres que ocupam os trabalhos mais difíceis são as primeiras vítimas.” Serge Halimi sublinha que, se fosse viva, a sua mãe estaria na linha da frente desta “causa e na manifestação ao lado” das mulheres. 

Posição idêntica tem a associação Choisir la cause des femmes, (Escolher a causa das mulheres), fundada em 1971 por Gisèle Halimi e Simone de Beauvoir. “Gisèle Halimi nunca aceitaria uma coisa destas", sublinhou em entrevista à France Info Violaine Lucas, a actual presidente da associação. “O presidente da República está a implementar uma reforma das pensões que vai prejudicar as mulheres, por isso mesmo não nos podemos associar a esta homenagem. É chocante”, acrescentou Violaine Lucas acusando o executivo de "instrumentalização política”.

A lista de ausentes continua: Anne Tonglet, uma das duas mulheres defendidas por Gisèle Halimi, em 1978, no emblemático processo de Aix-en-provence, que abriu portas ao reconhecimento da violação como um crime em França, também não vai marcar presença. Nem a Fondation des femmes (Fundação das Mulheres), cuja presidente Anne-Cécile Mailfert, em entrevista à France Info, deixou bem claro que o seu “lugar é na rua. É assim que lhe será prestada a mais bonita das homenagens.” 

Para nos falar do legado de Gisèle Halimi e das lutas feministas actuais, a RFI ouviu a Luísa Semedo, doutora em filosofia em Paris, que defende que a homenagem a este nome cimeiro dos direitos humanos em França é mais do que justa, todavia sublinha que, se fosse viva, Gisele Halimi estaria na rua ao lado das mulheres. 

RFI: Como é que olha para esta homenagem do Eliseu? Trata-se de uma justa homenagem ou de aproveitamento político da figura de Gisèle Halimi? 

Luísa Semedo: Uma homenagem a uma feminista é sempre de louvar, tendo em conta até o ambiente, hoje, de machismo e de ideologias masculinistas e outras que estão a fazer bastante pressão na sociedade. Portanto, é sempre de louvar. É melhor do que nada, como se diz. Mas ainda há um caminho a percorrer.

Esperamos que Gisèle Halimi vá para o Panteão. Por enquanto, [Emmanuel] Macron ainda não tomou essa decisão, porque ele também tem medo destas franjas mais reaccionárias.

Fico-me pela opinião da família, de pelo menos um dos filhos de Gisèle Halimi, que acha que é, de facto, um aproveitamento político e que a mãe estaria provavelmente hoje na rua a manifestar-se contra esta reforma das reformas.

A data escolhida para esta homenagem foi alvo de críticas. A conjuntura política actual debate a reforma do sistema nacional de pensões, que é bastante penalizadora para as mulheres. Se esta reforma não estivesse a ser debatida, esta homenagem era-lhe devida? Gisèle Halimi já faleceu há mais de dois anos.

Sim, a homenagem é-lhe devida, mas uma homenagem não pode ser só um discurso e um nome que aparece num momento. Também tem que se compreender qual era o estado de espírito e qual era a luta de Gisèle Halimi.

A luta de  Gisèle Halimi não era só aparecer. Ela tinha uma luta, desde muito cedo que era uma luta bastante interventiva.

Portanto, a maior homenagem, de facto, que se podia fazer a Gisèle Halimi, muito mais do que o Panteão ou uma homenagem nacional, é que houvesse uma transformação: que houvesse, por exemplo, um maior financiamento para associações feministas; a criminalização da violação que não fosse só lei mas que fosse, também, facto; que a luta LGBT fosse mais levada a sério; o acesso à IVG e o seu reembolso também. Ou seja, que as suas lutas fossem uma realidade, acho que essa seria a melhor homenagem.

O que é que a França deve a Gisèle Halimi?

Para já, deve uma visão humanista. A França que diz sempre que é o país dos direitos humanos, a Gisèle Halimi é uma representante dessa ideia.

A França pode ter orgulho em ter uma francesa, franco-tunisina, que lutou, que é uma figura dos direitos humanos e não somente na França, mas no mundo. Porque era uma militante anticolonialista e, portanto, temos uma dívida nesse sentido. 

Se fizermos um balanço do que é a França enquanto país dos direitos humanos, a figura de Gisèle Halimi aparece, sem dúvida, como um dos nomes sonantes desta representação."

A questão da despenalização da Interrupção voluntária da gravidez é indissociável de Gisèle Halimi. 

Há sensivelmente um mês o Senado francês aprovou a inscrição da IVG na Constituição. Todavia, ainda há um longo caminho a ser percorrido para que a “liberdade da mulher” de interromper a gravidez seja letra constitucional.  

Qual é a necessidade de inscrever a IVG na constituição? 

Eu penso que somos muitas e muitos a compreender que estamos numa fase da história em que o retrocesso está aqui. As forças reaccionárias e antifeministas contra a IVG estão a ter muita força, muita comunicação, estão a utilizar bastante as redes sociais e têm meios para o fazer.

 Portanto, inscrever na Constituição é dar um passo suplementar para que seja mais difícil poder voltar atrás, poder haver retrocesso. O retrocesso é sempre possível. É sempre esse um dos nossos medos.

 Não há nenhuma conquista das mulheres que esteja completamente escrita sobre pedra, como se diz. É mais um passo. Espero que sim. Espero que vá para a frente esta inscrição na Constituição.” 

O feminismo de hoje em dia é diferente do feminismo dos anos 70?

"Sim, eu acho que é um bocadinho diferente porque, para já, somos herdeiras da luta anterior. 

Eram lutas incríveis. Lutar para se poder ter uma conta no banco, lutar para se poder viajar, lutar por coisas que nos parecem absolutamente evidentes hoje e nem conseguimos imaginar como é que seria antes. Lutar para se poder votar, por exemplo. Portanto, eram lutas absolutamente essenciais nessa altura. 

Nós já estamos numa outra fase. Na fase justamente de tentar não baixar os braços. Sim, já não é como antigamente mas, ainda, estamos muito longe da igualdade total daquilo que deve ser a justiça.

A nossa luta de hoje é reforçar, fazer com que não haja retrocesso e continuar a fazer esta força de pressão para dizer que queremos igualdade, queremos liberdade.

Depois há matérias que me parecem não mudar, como por exemplo os feminicídios. Continuamos a ter taxas de feminicídio absolutamente inacreditáveis, continuamos a ter taxas de violações inacreditáveis, continuamos a ter taxas de não criminalização, ou seja, a taxa de homens que são de facto condenados é ínfima em relação às violações. Portanto, ainda há aqui muito caminho.

Acho outra coisa que talvez seja um pouco diferente - pode ser só uma visão minha de hoje - a interseccionalidade das lutas. Hoje o feminismo não vive numa bolha, o feminismo tem que ser anti-racista, tem que ser ecologista, tem que ser pró LGBT, ou seja, tem que incluir vários níveis de luta e não pode ficar fechado numa bolha.

Em 2023 as desigualdades de género continuam.

Já este ano, o Alto Conselho para a Igualdade em França lançou um relatório sobre o sexismo no país e concluiu que apesar de haver uma maior sensibilidade para a discriminação da mulher após o movimento Metoo, "os clichés e estereótipos ligados ao género continuam". 

23% das mulheres francesas declaram ter uma desigualdade de salário em relação aos seus colegas homens e, na esfera privada, 37% das mulheres dizem que já tiveram relações sexuais não consentidas. 

Em França, em 2022 morreram, pelo menos, 111 mulheres vítimas dos seus parceiros ou ex-parceiros. O relatório mostra que 23% dos homens, de 25 a 34 anos, considera que é preciso ser violento numa relação para ser respeitado. 

O relatório acaba por ser chocante.

É chocante porque é dito, porque é visível de forma muito explícita, mas não é surpreendente. É algo que vemos no dia-a-dia. Sabemos que é assim. É verdade que, por vezes, é escondido. 

Existem hoje ideologias que têm um grande poder de comunicação e que estão a assumir o lado machista, o lado masculinista e é um perigo. Este é um dos nossos novos desafios, é lutar contra isto que também tem a ver com esta novidade das redes sociais.

Este relatório vem só mostrar que não podemos de todo baixar os braços, apesar dos progressos, ainda há um longo caminho [a percorrer]. 

É uma luta que tem que ser mesmo constante, porque há mulheres a morrer. O machismo mata todos os dias.

Esta luta também se faz no masculino, com a participação de mulheres, de homens e inclusive de crianças. A Luísa Semedo é mãe de dois rapazes. Como é que os sensibiliza para estas questões?

"É importante falar, dialogar muito com os rapazes, não ter medo de falar destas questões.

Converso muito com os meus filhos, mostro-lhes documentários. Por exemplo, ainda há pouco tempo fomos a uma exposição da Baya, que é uma uma pintora argelina. Ou seja, é preciso que eles também tenham uma cultura e uma visão das mulheres bastante diversificada e não só um certo tipo estereotipado do que são as mulheres ainda hoje. 

Portanto, isso é um trabalho sem fim e sobretudo parece-me essencial trabalhar contra tudo o que é a parte mais violenta que possa haver. 

Quando os meus filhos utilizam mais a força física, falo sempre com eles sobre isso, para eles terem cuidado com a maneira como eles utilizam a raiva, como eles gerem a frustração. Porque isso é, de facto, algo que pode vir mais tarde.

Os feminicídios ou violência muitas vezes tem a ver, por exemplo, com as noções de propriedade, a maneira como se vê a mulher no casal, a maneira como se tem recurso à violência, a maneira como se gera frustração ou à raiva e, portanto, falo muito disso com eles.

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