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Vida em França

Os "restos e as sombras" de Pedro Costa em exposição em Paris

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O realizador português Pedro Costa tem neste momento, em Paris, uma exposição, uma retrospectiva, a estreia de um filme e dois livros acabados de ser publicados. É o “momento Pedro Costa” que por estes dias se vive na capital francesa.

Minino macho, Minino fêmea, 2005.
Minino macho, Minino fêmea, 2005. © Pedro Costa
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Acabam de ser publicados os livros Pedro Costa, Les Chambre du cinéaste com cinco textos do filósofo frances Jacques Rancière e Pedro Costa, Cinéaste de la lisière do investigador Antony Fiant.

Até dia 26 de Junho está patente nos Jeu de Paume, nos Jardins das Tulherias, uma retrospectiva do realizador que vai desde a sua primeira longa-metragem O Sangue, de 1989, até ao filme Vitalina Varela premiado com o Leopardo de Ouro e prémio de melhor actriz no Festival de Locarno em 2019.

Estreou, igualmente, esta quarta-feira em França o filme Cavalo Dinheiro, Ventura na versão francesa. Filme premiado em 2014 em Locardo (melhor realizador), mas inédito até agora nos écrans franceses e que pode ser visto em pleno Quartier Latin, no cinema Mèdicis.

Também decorre até dia 22 de Agosto a exposição “O Resto é sombra” de Pedro Costa, Rui Chafes e Paulo Nozolino no Centro Georges Pompidou. Com a curadoria de Philippe-Alain Michaud e Jonathan Puthier, esta “apresentação imersiva”, como é descrita pelo Pompidou, tem uma cenografia labiríntica, com pouca luz, onde o visitante escolhe a geometria do seu percurso. Se a sombra é transversal ao trabalho destes três artistas, o resto também. O resto da luz, o resto das cidades, o resto de casas, de coisas, aquilo que resta da vida das pessoas. A adensar a intensidade da exposição está o barulho constante das demolições filmadas por Pedro Costa nos subúrbios de Lisboa.

Foi, precisamente, numa das salas do Centro Pompidou onde decorreu esta conversa como realizador português  Pedro Costa.

O resto é sombra. Porquê este título?

Nós, os três, durante muito tempo no trabalho de preparação, preferíamos ter os nossos três nomes como título da exposição. A certa altura o Philippe-Alain [Michaud] e o Jonathan [Puthier] pediram-nos um título para reforçar, para identificar melhor as coisas. É normal haver um título de uma exposição, caso uma coisa de catálogo. E nós pensámos, tínhamos várias ideias, cada um de nós e, a certa altura, reunimos e chegámos a esta citação do Fernando Pessoa, um poema do Pessoa apenas porque contém a palavra “sombra” que é muito comum em nós os três. Nos meus filmes, nas fotografias do Paulo [Nozolino] e mesmo nas esculturas do Rui [Chafes] que são todas em ferro negro. Portanto era uma palavra que se adequava bem. Todos gostávamos, todos aprovámos e passámos ao Philippe-Alain e ao Jonathan, que gostaram bastante. Acontece que é do Pessoa, que é o nosso poeta mais conhecido. Passou do título para os textos e, portanto, agora sabe-se que é uma citação do Pessoa.

No meu caso, a palavra “resto” também é importante”. 

O que nós vemos nesta exposição é muito o resto da sombra. Aquilo que saí do negro. A exposição é no escuro e o que sobressai são os restos. No seu caso, também mostra muito os restos da vida, os restos da demolição.

Exactamente, é isso mesmo. Tenho a sensação e tenho dito muitas vezes que estou, até pelo lado da produção, pelo lado do cinema, da maneira como se produz um filme, eu trabalho com restos, resto de coisas e restes de pessoas. As pessoas estão a tentar completar-se, estão quebradas, estão partidas. Pelo menos nestes sítios onde eu tenho trabalho há vinte anos e nos filmes tudo são restos, como disse, de casas, de cidades, de comunidades, etc. Enfim, são o que pode ser. Eu filmo com o que se pode apanhar”.

De todo o trabalho que têm, e têm imenso, como é que chegaram a esta composição?

“Isso foi um trabalho de grupo também com os curadores. A minha ideia, o convite começou por ser feito a mim em 2019, [acabou por ser adiado devido à pandemia], e eu trouxe o Rui [Chafes] e o Paulo [Nozolino] para o projecto. A partir daí começámos a pensar que peças, como compor as salas. Eu tinha feito uma exposição no Porto, no Museu de Serralves, onde duas das peças que estão cá também estavam lá, mas de uma maneira um bocadinho diferente por causa do espaço. O espaço em Serralves é muito diferente daqui, mas uma peça em colaboração com o Rui Chaves e outra com o Paulo Nozolino vieram.

Depois tratava-se de compor, alongar com outras peças, com outras fotografias, com outras esculturas e talvez outros filmes. Isso foi uma discussão longa, desde 2019 até quase três meses antes da exposição. Quais as peças, quais as fotografias, como são as salas, a arquitectura, etc. Isso foi discutido em conjunto e chegámos a este resultado um bocadinho em colectivo”. 

Esta escuridão também foi decidida por vocês? 

Sim. É uma arquitectura. Mais do que um trabalho de luz, é uma arquitectura da arquitecta que trabalha cá”. 

Porque há a escuridão e também há todo o trajecto que é meio labiríntico. 

Sim, sendo das paredes escuras e digamos que relativamente apertadas, é um percurso sinuoso, labiríntico, onde as pessoas se podem perder. Perder no bom sentido e encontrar as peças de outra maneira, muitos pontos de vista. Há esquinas como nas ruas, é uma ideia pequeno bairro, pequeno ‘casbah’, pequena medina onde há muitas vozes, muitas cores, muitos sopros, murmúrios e gritos, e as coisas passam de umas para as outras com uma circulação interessante, eu acho".

A abrir a exposição está o Ventura, com os braços cruzados e as mãos viradas para fora. Numa outra sala, encontramos rostos de mulheres, dos seus filmes, e as mãos de Rui Chaves. Não pode dar aqui a sensação de que elas de alguma forma estavam algemadas?

"Nenhum de nós trabalha muito com intenções, de querer fazer uma coisa que diga aquilo ou outro ou exprima isto ou outra coisa. Por mim falo, os meus filmes são aquilo que está ali, são aquela realidade, são pessoas que filmo no trabalho, em repouso, com problemas, que discutem, que monologam…

De facto, é uma realidade do nosso país. É uma realidade relativamente esquecida, mas absolutamente maioritária. Eu até diria que o que se vê nesta exposição, por mim, pelos meus filmes, talvez seja 80% da humanidade, para não exagerar. Salvam-se uns resquícios em Saint Tropez e Los Angeles e o resto é aquilo, é isto, é uma grande miséria. Às vezes é muito visível, exterior, outras vezes é interior.

Nós, os três, se reflectimos isso e as nossas obras reflectem isso é porque vivemos na realidade e temos alguma consciência dela. Mas não há uma intenção de provocação ou desencadear esses sentimentos.

Estamos numa história, estamos no mundo e nesta realidade. Isso vê-se muito nas fotografias do Paulo [Nozolino]. O Paulo atravessou muito a história com a fotografia desde a última guerra, pelo menos, até às guerras mais recentes, até aos efeitos dessas devastações, até esta que se passa agora”. 

Isto é uma exposição colectiva ou uma exposição individual onde cada um de vocês se vai cruzando com o outro?

"É as duas coisas. Nós não trabalhamos em conjunto, aproximamos coisas. Ou seja, falou da primeira sala, o Rui e o Paulo trabalharam um bocadinho solitariamente e de repente acharam que Paulo tinha aquilo e o Rui tinha aqueloutro e juntos acharam bem. Eu, com o Rui, foi a mesma coisa. Trabalhamos por aproximações. 

É um bocadinho como no cinema, colar duas imagens provoca uma terceira, que de facto não existe, é formada pelo espectador, é uma coisa que o visitante imagina ou consegue produzir de juntar aqueles rostos daquelas mulheres por exemplo como a fotografia do Paulo, ou com a escultura do Rui, etc".

Neste momento decorrem várias iniciativas artísticas sobre si em Paris: esta exposição aqui no Centro Pompidou, o filme Ventura que acaba de estrear, uma retrospectiva no Jeu de Paume e há ainda dois livros publicados sobre si, aqui, este ano. É a sua consagração? Como é que olha para isto tudo? 

"Não dessa maneira. Esta exposição já tem um passado. Devia ter acontecido há uns tempos e, se calhar, não tinha tanta confluência com outras coisas.

O filme estava para sair, estava para estrear e o distribuidor calculou que fosse, talvez, uma altura melhor para o estrear visto haver dois acontecimentos simultâneos. Os livros são, não digo uma coincidência, mas não foram programados. Um foi apressado para sair, de facto, ao mesmo tempo, mas apenas pela circunstância de eu estar aqui durante algum tempo e poder fazer as chamadas apresentações, assinaturas.

A pandemia mudou e atrasou isto tudo e fez esta espécie de concordância das coisas todas. É muito bom, claro, para mim". 

O filme o Ventura acaba de estrear em França, depois de ter estreado anteriormente (há menos de seis meses) a Vitalina Varela, que é um filme posterior. De alguma forma não o defrauda, digamos assim, que os filmes tenham sido cronologicamente alterados?

Não são filmes da chamada actualidade. A circunstância de estarem trocados, ou seja, deste ser mais antigo e sair agora é simplesmente porque não houve, na altura, 2015, distribuidores interessados ou capazes de estrear o filme. 

Só depois do Ventura ser distribuído por uma distribuidora francesa, é que propus esta saída desse filme que estava inédito e eles aceitaram. Está cumprido!

Mas acaba por ser fantástico um filme que fez há algum tempo, estrear agora em França e ter esta repercussão toda? 

"Sim, é também porque os filmes que eu faço têm muitas ligações entre eles. A Vitalina, que está neste, já estava na própria Vitalina. O Ventura passa por imensos.

As pessoas já conhecem um pouco do trabalho que eu faço, que para o bem é um trabalho que, eu acho que as pessoas acham interessante, sério e importante, espero e para o mal acham que é sempre a mesma coisa: os pobres dos bairros pobres de Lisboa". 

Qual é o tempo desta história? Presente? Passado? Aquilo que se vê são os corredores da cabeça do Ventura?

"É isso, é isso que disse. Não é mau isso dos corredores, já que há corredores cá em cima, escuros e que levam a diferentes realidades.

No Ventura também há fantasmas, pesadelos e não diria traumas mas alguns esquecimentos que lhe aconteceram por volta da data simbólica 25 de Abril.

O que se passa no filme é a história desta quebra, queda do Ventura, que é um operário da construção civil que, nesse ano de 1974, começou a perder-se pelas ruas de Lisboa e a perder-se no seu tormento.

É uma história pouco contada, mas os emigrantes africanos nessa altura apanharam um grande susto. Tinham vindo para Portugal, vêm para Portugal, à procura de uma vida melhor e, de repente, deparam-se com greves, paragem do trabalho, patrões a fugirem para o Brasil e com soldados na rua. Com soldados contentes e alegres, mas muito ameaçadores para eles, para eles emigrantes que viviam já numa espécie de guetos, de prisões nos arredores e ainda hoje vivem".

Essa realidade acaba por ser actual, muito actual ainda.

"Eu digo sempre que se o 25 de Abril tivesse sido cumprido, eu não tinha feito estes filmes. Não eram necessários.

Portanto se os filmes foram feitos, se este lamento soa verdadeiro é porque alguma coisa ficou por cumprir de um sonho que eu tive, que tiveram todos que eu acho que ainda há muitas pessoas que têm, que alimentam que é o sonho de uma uma espécie de justiça banal entre todos, não digo democracia, mas justiça".

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