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Guerra Israel/Hamas: "Há um antes e um depois de 7 de Outubro"

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Os ataques do braço armado Hamas em Israel aconteceram há exactamente um mês, a 7 de Outubro. Desde então, já morreram milhares de pessoas tanto do lado israelita, como do lado palestiniano. Em entrevista à RFI, Henrique Cymerman, jornalista baseado em Israel, fez o balanço deste que é o primeiro mês de guerra entre o Hamas e Israel e explicou-nos que tudo mudou a partir desse dia.

Hospital Al-Shifa, Cidade de Gaza, 5 de novembro de 2023.
Hospital Al-Shifa, Cidade de Gaza, 5 de novembro de 2023. AFP - BASHAR TALEB
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RFI: Os ataques do grupo Hamas aconteceram há exactamente um mês. A primeira pergunta que lhe faço, Henrique, é como é que a esta altura os israelitas vivem o dia-a-dia?

Henrique Cymerman: Há um antes e há um depois. O dia 7 de Outubro mudou a realidade israelita de uma maneira total. Há quem diga que agora, quando esta guerra acabar, isto vai ser o estado de Israel 2.0. É uma nova etapa porque nunca tinha acontecido uma coisa assim, ou seja, Israel viveu muitas guerras, muitos atentados terroristas, ondas de suicidas ou mísseis lançados desde o Iraque, mas nunca tinha acontecido que, num mesmo dia, 1.400 israelitas tenham sido assassinados, mutilados, violados durante horas por três mil homens de um grupo terrorista. É, sem dúvida, o dia mais trágico da história judaica desde a II Guerra Mundial. 

Isto era uma coisa que não se esperava no Estado de Israel moderno, um país tecnológico, com um exército muito forte, um país com grande experiência na sua defesa e realmente os israelitas perderam um pouco a sua segurança. Eu acho que todos os israelitas estão numa espécie de pós-trauma depois do dia 7 de Outubro. Eu estive num dos kibutzs que foi atacado, Nir Oz, e as coisas que eu vi lá não tinha visto em nenhum lugar do mundo, nem mesmo durante os ataques do ISIS, no Iraque e na Síria.

RFI: Pode relatar-nos o que viu nesse kibutz?

Henrique Cymerman: Entras no kibutz e está tudo queimado. Eles incendiaram casas com pessoas dentro do mamad, que é o bunker/a sala, digamos o quarto protegido, à prova de bomba. Como não podiam abrir as portas, queimaram pessoas vivas, violaram mulheres, violaram crianças. Há testemunhos, hoje em dia, de que violaram cadáveres, que receberam uma licença especial para o fazer porque os grupos radicais islamistas não consideram os judeus seres humanos, então, há uma desumanização total e pode fazer-se o que quiserem, como quiserem. E assim foi. Como chegaram à festa... Eles não sabiam que iam encontrar-se com essa festa de três mil jovens e foi um grande prémio para o Hamas.

[Os jovens] toda a noite estavam a dançar e, de repente, começam a cair os paraquedistas e os rockets, lançados desde Gaza sobre esses jovens, mas, de repente, aparecem os homens armados e começam a abrir fogo a sangue frio, a violar, a saquear e, sobretudo, a levar sequestrados para Gaza e assim foi como eles mataram 260 jovens. Eu vi imagens de como eles deixaram os cadáveres ali no chão. Parecia realmente um espectáculo dantesco. As coisas que se viram ali e tudo isso provocou, eu acho, uma reacção oposta ao que eles pensavam, na sociedade israelita. 

Eles e os patrões deles, que é o Irão, que é quem realmente planeou este ataque (foi planeado em Teerão durante anos), eles pensavam que a sociedade israelita estava muito dividida, o que é verdade. Estava muito dividida politicamente devido a uma reforma que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahou queria por em prática, no campo judicial, e então começaram manifestações durante 10 meses na sociedade israelita, de centenas de milhares de pessoas, e eu acho que, nem o Irão, nem o Hamas compreenderam o significado do que estava a acontecer. Eles pensaram que era o princípio do fim do Estado de Israel e queriam dar um golpe final, um golpe de graça ao Estado de Israel. O que aconteceu foi que fizeram exactamente o oposto.

A sociedade israelita uniu-se, aqueles que se estavam a manifestar contra o governo, estão agora dentro dos aviões que atacam Gaza, dentro das unidades especiais, dos tanques, etc. Eles que tinham dito que não se apresentavam na reserva, estão agora juntos. Eu acho que eles conseguiram o efeito oposto: unir a sociedade israelita, pelo menos nesta campanha contra o Hamas. Depois da campanha vai começar a discussão política, muito séria, sobre como foi possível uma coisa assim. 

RFI: O balanço deste conflito é muito pesado. Pergunto-lhe como é que está a ser feito o acompanhamento das famílias das vítimas e também dos familiares dos reféns?

Henrique Cymerman: É um problema. Eu estive no Museu de Telavive, onde eles montaram aquilo a que chamam 'a Praça dos Reféns', onde estão as famílias, muito perto do ministério da Defesa de Israel, para lembrar ao governo que a principal missão que tem hoje em dia Israel é libertar os 240 reféns.

Há entre os reféns, e eu vi isso no kibutz, fotografias de bebés, o Kfir Bibas, de 9 meses, que agora já tem 10 porque passou um mês que está sozinho lá. Mataram os pais dele, mataram irmãos, mataram avós e ele sobreviveu. E por algum motivo especial, que eu não determino explicar, levaram o bebé para Gaza. Então, a pergunta que todas as famílias dos reféns fazem é: "Quem é que se ocupa desse bebé nos túneis do Hamas em Gaza?" E como ele, há 31 crianças que estão lá. Há cinco refugiados do Holocausto. Eu acho que, até que esses reféns voltem (eu espero que vivos para Israel), Israel vai continuar a fazer todo o possível e impossível para o conseguir. É uma situação que nunca tinha acontecido no passado. Houve um soldado israelita, Gilad Shalit, que foi sequestrado em 2006 e que voltou, em 2011, a troco de 1027 presos, entre eles, Yahya Sinouar, que é o homem que está a dirigir a campanha do Hamas em Gaza e que Israel não vai parar até conseguir detê-lo ou matá-lo. 

RFI: E, no seu entender, estas pessoas (os reféns) estão a ser usadas, de forma explícita, como "escudos humanos"?

Henrique Cymerman: Eu conheço bem Gaza. Conheço bem o Hamas. Já entrevistei grande parte dos seus líderes. Eu acho que dois milhões de palestinianos são escudos humanos do Hamas, há 17 anos, desde que eles fizeram um golpe de Estado em Gaza e se apoderaram de Gaza pela força e expulsaram a Autoridade Palestiniana.

Eu acho que a população é refém do Hamas porque eu não conheço nenhuma entidade, nenhum governo, nenhum país, que coloque as suas bases no meio da população civil para se proteger, justamente que use a população como escudos humanos, e estes israelitas que lá estão são parte desses escudos humanos, mas apesar de tudo, eu penso que a situação do Hamas é mais precária neste momento.

O exército israelita já ocupou o norte de Gaza. Vamos ver o que é que vai acontecer na cidade de Gaza, que é um pouco o bastião do braço armado do Hamas e a coisa mais terrível de tudo é que há tantas vítimas palestinianas civis e cada vida é um mundo. É uma pena que os civis, dos dois lados, tenham de pagar pelo fanatismo de um movimento terrorista.

RFI: Um pouco por todo o mundo, muitos têm sido os apelos para que Israel autorize uma pausa humanitária. Parece-lhe verosímil que Israel venha a aceitar e a que prazo?

Henrique Cymerman: Eu hoje ouvi que mais de 100 camiões passaram, que se está a aproximar aos números de antes da guerra. Eu penso que Israel recebeu, sobretudo, dos Estados Unidos da América um apoio sem precedentes, uma luz verde, para acabar com o braço armado do Hamas, mas os Estados Unidos têm alguns pedidos. Um deles é que se faça esta ajuda humanitária, tratamentos médicos.

Há neste momento um hospital de campanha que Israel e o Egipto acordaram que vai ser construído, que já está a ser instalado no lado egípcio, de Rafah. Há um barco da marinha de guerra francesa que vai estar em frente a El-Arich para tratar as vítimas, tratar os civis feridos, e, ao mesmo tempo, estão a entrar camiões com a ajuda para a população (quase um milhão de pessoas que estão no sul de Gaza) segundo o que o exército pediu.

O que o exército de Israel quer tentar é separar a população civil do Hamas porque o objectivo de Israel não é matar civis. É verdade que morrem muitos civis, mas o objectivo de Israel é acabar com a infra-estrutura militar do Hamas, para que não possa haver outros 7 de Outubro.

Um dos líderes do Hamas disse, no outro dia, muito abertamente: "Vai haver mais 07 de Outubro até que nós aniquilemos o Estado de Israel". E isso é tomado muito a sério em Israel, depois do que aconteceu aqui, há exactamente um mês. É realmente uma situação que os israelitas levam muito a sério e é, por isso, que há mais reservistas israelitas que se apresentaram ao exército, do centro, da esquerda, da direita, do que é preciso, na realidade. Acho que, neste momento, praticamente não há ninguém, ou estamos a falar de percentagens mínimas dentro da sociedade israelita, que pensam que é preciso continuar a negociar com o Hamas.

O Hamas recebia dinheiro do Catar todos os meses, com o acordo de Benjamin Netanyahou, 30/40 milhões de dólares, que chegavam continuamente para o Hamas. Entravam 20 mil trabalhadores em Israel, todos os dias, que eram uma fonte de dinheiro muito importante para a população de Gaza e, uma vez mais, o Hamas está a estragar tudo, com o que fez no dia 7 de Outubro e eu tenho a impressão de que perdeu o seu lugar à volta da mesa. É preciso pensar no depois, é preciso pensar em devolver à Autoridade Palestiniana Gaza, como era até 2007, mas o Hamas não tem lugar nesta nova mesa que vai incluir a comunidade internacional e países árabes da região que estão interessados em estabilizar Gaza.

RFI: Na sua óptica, não estaremos cada vez mais longe de uma solução de dois Estados?

Henrique Cymerman: Eu espero que não. Eu até penso que depois de anos, a comunidade internacional praticamente esqueceu o tema palestiniano ou falou muito menos dele. Eu vejo isso como jornalista, que havia muito menos interesse em tudo o que tivesse a ver com os palestinianos. Antes fazíamos várias reportagens todas as semanas e, ultimamente, desde que começou o coronavírus, praticamente desapareceu.

Agora eu acho que o mundo compreende que, enquanto não se solucionar esse problema, não se pode estabilizar a situação no Médio Oriente. É verdade que são muito importantes os acordos de Abraão, que foram assinados há três anos, entre Israel e quatro países árabes. É verdade que a Arábia Saudita e Israel estavam quase a assinar a paz, muito próximos e o Hamas e o Irão fizeram este ataque, entre outras razões, para matar qualquer esperança de paz, mas parece-me que o que vai acontecer é exactamente o contrário: eu acho que vamos ver uma iniciativa internacional árabe e também israelita, nos próximos anos, de finalmente por fim ao conflito mais antigo da história da humanidade porque basta de civis a sofrer dos dois lados da fronteira.

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