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Paris mostra “história desconhecida” de portugueses no trabalho forçado nazi

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O Consulado-Geral de Portugal em Paris tem patente, até final de Agosto, a exposição “Trabalhadores Portugueses e Espanhóis no III Reich”. A mostra é sobre a “história tão desconhecida” de portugueses e de espanhóis que foram deportados para trabalhos forçados na Alemanha e nos territórios ocupados, incluindo em França, explicou à RFI a historiadora Cristina Clímaco.

Imagem da exposição “Trabalhadores Portugueses e Espanhóis no III Reich” no Consulado-Geral de Paris. 07 de Agosto de 2023.
Imagem da exposição “Trabalhadores Portugueses e Espanhóis no III Reich” no Consulado-Geral de Paris. 07 de Agosto de 2023. © Carina Branco/RFI
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RFI: Porque fala em “história tão desconhecida”? Do que fala esta história e esta exposição?

Cristina Clímaco, Historiadora e uma das comissárias da exposição: Esta história e esta exposição falam dos trabalhadores emigrantes - sobretudo, mas não só - que foram contratados ou requisitados em França para trabalhar no III Reich, portanto, em todo o território ocupado pela Alemanha Nazi, mas também na França ocupada. São histórias de trabalho e são histórias da emigração portuguesa e espanhola. No caso espanhol, há que ressalvar também que houve um acordo de mão-de-obra entre a Alemanha e a Espanha, pelo que também foram contratados trabalhadores em Espanha.

A exposição mostra algumas das histórias destes homens e mulheres. Quem é que eles eram de uma forma geral?

Eram emigrantes de uma forma geral, muitos emigrantes: trabalhadores que chegaram desde os anos vinte, outros que chegaram muito pequenos a França, mas há também alguns casos - mais no caso português - com um perfil mais político, portanto, são internados que estavam nos campos de internamento franceses e que, como solução para sair desses campos, optaram pelo trabalho na Alemanha. No caso dos espanhóis, para além da emigração, há também os republicanos que foram, aí sim, de uma forma mais enérgica obrigados e forçados a trabalhar na Organização Todt e também posteriormente na Alemanha. Portanto, por um lado temos emigrantes económicos e, por outro, temos um lote muito importante de trabalhadores republicanos espanhóis e perfis mais políticos portugueses que se encontram no trabalho na Alemanha.

A exposição mostra também que embora fossem contratos de trabalho, era trabalho forçado na Alemanha e nos territórios ocupados. Ou seja, era uma forma de deportação também? As pessoas não iam voluntariamente para estes trabalhos ou iam?

Não. Nem homens nem mulheres iam de forma, digamos, não forçada. O que difere é a forma como foram obrigados a trabalhar na Alemanha. Há cerca de 250.000 trabalhadores que foram de França de forma voluntária, ou seja, inscreveram-se para trabalhar na Alemanha, inscreveram-se nos escritórios que a Alemanha abriu em Paris, primeiro na França ocupada e depois na França livre e a partir de 1942 com a “Relève” e depois em Fevereiro de 1943 com o STO [Serviço do Trabalho Obrigatório] com uma forma mais visível de obrigação de partir para a Alemanha.

Quer explicar-nos o que é a “Relève”?

A “Relève” foi um estratagema que foi proposto pela França de Vichy de trocar três trabalhadores pelo regresso de um prisioneiro de guerra. Portanto, era ainda uma forma também de voluntariado, ou seja, os trabalhadores ofereciam-se para trabalhar na Alemanha para fazer regressar um prisioneiro de guerra.

O que é importante também de frisar é que este voluntariado não é um voluntariado. Os alemães vão encontrar formas de levar, não diria manipular, mas de forçar a uma partida voluntária. O recrutamento em França começa imediatamente após a Ocupação, logo no Verão de 1940. Portanto, entre 1940 e Setembro de 1942, todo o trabalhador que vai para a Alemanha fá-lo de forma voluntária, mas é necessário pôr este voluntariado entre aspas porque não é um voluntariado livre. Ninguém vai de livre vontade. Vão porque, de uma forma ou de outra, são forçados porque estão no desemprego, porque vão buscá-los aos locais de trabalho para reuniões de ofertas de trabalho e depois, por exemplo, no caso de alguns portugueses retiraram-lhes as senhas de alimentação. Portanto, há várias formas de levar estes trabalhadores a irem para a Alemanha sempre sob a forma de voluntariado.

Um dos cartazes da exposição menciona que houve cerca de 80.000 mulheres a partirem para trabalhar na Alemanha devido a condições muito particulares, nomeadamente para fugir da violência doméstica. Quem é que são estas mulheres? Onde é que ficam as mulheres nesta história?

As mulheres nesta história… Frisou o facto de serem voluntárias e gostaria de explicar o seguinte: são 80.000 voluntárias porque a lei de Setembro de 1942 que vai introduzir essa “Relève” forçada, portanto, as requisições, devido ao papel que as mulheres têm nesta nova França que se quer construir, Vichy consegue retirar as mulheres da obrigação de trabalhar na Alemanha. Em Outubro de 1942 elas são retiradas dessa lei. A partir daí, todas as mulheres que vão para a Alemanha vão com o estatuto de voluntárias e isso tem consequências no pós-guerra.

Quem são estas mulheres? Todos os perfis. Há realmente gente de todas as condições sociais, mas muitas vão também por este espírito de aventura, vão porque é necessário um salário suplementar, vão muitas vezes para fugir a uma violência doméstica, vão também à procura de uma maior liberdade. Há uma panóplia bastante importante de perfis.

Nestas 80.000 mulheres, quantas portuguesas é que havia? E de uma forma geral, quantos portugueses - homens, mulheres e crianças - foram para a Alemanha para trabalhos forçados nessa altura?

 No caso das portuguesas vão, sobretudo, francesas, casadas com portugueses, mas que para os alemães são apresentadas como portuguesas. O seu número é relativamente reduzido comparativamente às espanholas que são bem mais numerosas. É um pequeno grupo. Não sabemos exactamente quantas mulheres.

Relativamente ao número de portugueses que foram trabalhar para a Alemanha, a investigação está ainda muito no início, mas o número é bastante importante, muito mais importante do que aquele que se pensou inicialmente porque vão sempre surgindo novos casos. Eu diria que entre dois a três mil portugueses estiveram na Alemanha a trabalhar.

Porque é que não se conhece esta história? Porque é que só agora se fala dela?

Como só agora se fala também dos portugueses na resistência, nos deportados portugueses. É, digamos, uma tomada de consciência que surgiu mais tardiamente, mas que está também ligada à abertura dos arquivos porque até há cerca de cinco anos o acesso a toda esta documentação era muito difícil. Portanto, houve uma investigação que não foi feita, mas há também limites para essa investigação.

Relativamente à presença de trabalhadores portugueses na Alemanha é muito recente. Apenas a partir de 2017 se começou a tomar conhecimento desta realidade. É uma investigação que se vem desenvolvendo pouco a pouco e que, ao chegar a determinados conhecimentos, abre também pistas para novas investigações. Chegou-se à questão do trabalho forçado através dos deportados. Quando se começou a ver quem eram estes deportados, começámos a tomar consciência que havia outra realidade e essa outra realidade era a presença de portugueses no trabalho forçado.

Como é que se trata esta memória histórica, que é antes de mais uma memória familiar e que acarreta, se calhar, alguns segredos e histórias mais subterrâneas no seio das próprias famílias por causa de toda a dor que representou?

É uma memória muito complicada, uma memória dolorosa. Eu explicaria este desconhecimento em Portugal e esta falta de memória histórica porque são emigrantes que quando regressaram [da Alemanha] ficaram em França. Não há conhecimento - ou se há alguns casos são muito excepcionais de portugueses que tenham depois regressado a Portugal. Quer dizer que não há uma transmissão familiar em Portugal, daí este encobrimento ou falta de conhecimento desta realidade.

Em França, no caso dos emigrantes, há uma dupla pena, digamos. Por um lado são estrangeiros, são emigrantes e, por outro, há um problema mais largo ou mais vasto que é o do estatuto dos trabalhadores. Logo no pós-guerra, há uma menorização da questão dos trabalhadores. Ou seja, o próprio trabalhador quando é comparado com um deportado é imediatamente relegado para uma posição subalterna. Há esta valorização do deportado e do resistente deportado que vai relegar para um esquecimento o trabalhador forçado. Está também ligado à situação do pós-guerra. Aliás, os trabalhadores forçados nunca conseguiram obter o estatuto de deportado.

Ainda que tivessem sido deportados, no fundo?

Exactamente, mas isso remete para outras guerras que são as guerras de memória do pós-guerra e da construção também da ideia de uma França resistente, de uma França que se opôs ao nazismo.

De todos estes percursos de vida, há algum que tivesse sido mais simbólico para si?

Alguns são extremamente simbólicos. Temos o caso do José Evangelista que foi requisitado, foi para a Alemanha requisitado, no âmbito da lei de 3 de Setembro de 1942, e que vai acabar deportado porque constituiu uma pequena rede de resistência no local de trabalho e que vai ser denunciado. É preso e internado numa prisão, já nos últimos dias de guerra, e enviado para estas marchas em que os alemães retiram para a retaguarda os prisioneiros. Portanto, ele vai acabar também nas chamadas marchas da morte.

O José Evangelista acabou por morrer nas marchas da morte ou sobreviveu?

O José Evangelista tem a sorte de sobreviver. Ele evade-se do comboio que o faz deambular pela Áustria e pela Eslováquia. Consegue evadir-se junto à fronteira com a Polónia e é ajudado por uns camponeses polacos e regressa a Paris, mas num estado de saúde muito precário.

Há outros percursos. Há uma presença, mas, ao mesmo tempo, também uma forma de resistir pelo trabalho. Temos que ver que são condições extremamente duras as condições de trabalho na Alemanha. São semanas de trabalho que podem ir até às 70 horas semanais. No final da guerra, há situações muito complexas de falta de alimentação, há o perigo dos bombardeamentos. Há também uma situação de stress muito importante. Eu penso que os casos mais emblemáticos são aqueles em que, apesar das dificuldades, conseguiram regressar e reconstruir as vidas.

Foram muitos os que regressaram?

Há uma taxa de regresso dos trabalhadores que é mais importante do que a dos deportados. Muitos, a maior parte, regressam, mas regressam em condições que não são as melhores. Não há estudos - e no caso dos portugueses ainda menos – do impacto que teve este trabalho na Alemanha nas vidas posteriores. Portanto, o stress, vidas completamente desconstruídas e que têm repercussão depois na vida após 1945.  

 

A exposição “Trabalhadores Portugueses e Espanhóis no III Reich (1940-1945)” é organizada no âmbito do projecto “FORCED — Portuguese and Spanish Forced Labourers Under National Socialism: History, Memory and Citizenship”, coordenado pela investigadora Cláudia Ninhos. Este projecto resulta de uma parceria entre instituições académicas e da sociedade civil de Portugal, Espanha, França e Alemanha, tendo sido financiado pela Comissão Europeia, com o programa “Europe for Citizens”.

No dia 12 de Setembro, a Université Paris 8 Vincennes – Saint-Denis acolhe a mesa-redonda “Mémoire douloureuse et citoyenneté” que vai contar com o historiador Fernando Rosas, o Presidente da Assembleia da República portuguesa, Augusto Santos Silva, e o Secretário de Estado espanhol da Memória Democrática, Fernando Martínez Lopez.

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