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Fórum de Istambul: "a Turquia necessita dos novos mercados que estarão em África"

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Desde esta sexta-feira e durante dois dias decorre em Istambul, o 3° fórum África-Turquia, um encontro no qual participam os dirigentes de 39 países africanos, nomeadamente 13 chefes de Estado. Este fórum que tem por intuito validar um novo programa de cooperação para os próximos cinco anos, tem igualmente como objectivo dar um novo impulso às trocas comerciais já importantes entre o continente Africano e a Turquia.

O presidente Erdogan durante a sua visita oficial a Luanda em Outubro de 2021.
O presidente Erdogan durante a sua visita oficial a Luanda em Outubro de 2021. © Osvaldo Silva AFP/arquivo
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Desde o primeiro fórum África-turquia em 2008, a cooperação entre Ancara e o continente deu um salto gigantesco. Actualmente a meta de Erdogan é chegar pelo menos aos 50 mil milhões de Dólares de volume de negócios, isto quando eram apenas de 5,4 mil milhões em 2003. 

Nestes últimos anos, o Presidente turco efectuou nada menos do que 38 deslocações em 28 países africanos. A companhia aérea turca cobre actualmente mais de 60 destinos no continente, Ancara intervindo ainda noutros domínios como a saúde, a educação, as infra-estruturas ou ainda a agricultura.

Para além dos seus produtos industriais, na vanguarda das exportações da Turquia estão os equipamentos militares. Com uma base na Somália e uma rede de 19 adidos militares por todo o continente, a Turquia tem multiplicado as vendas de armas, em particular os drones de combate que comprovaram a sua eficácia na Líbia onde Ancara intervém desde 2019.

No passado mês de Setembro, por exemplo, a Somália, Marrocos e a Tunísia encomendaram os seus primeiros drones. Angola também manifestou o seu interesse aquando da visita do presidente Erdogan a Luanda em Outubro, sendo que ainda antes, em Agosto, a Turquia assinou em Agosto um acordo de cooperação militar com a Etiópia atolada num conflito há mais de um ano com os rebeldes do Tigray, no norte do seu território. 

Entre Janeiro e Novembro deste ano, as exportações de armamento turco para a Etíopia ultrapassaram os 94 milhões de Dólares contra cerca de 235 mil no mesmo período em 2020.

Este fórum que acontece numa altura em que a Turquia está a braços com uma forte crise económica acontece igualmente num período de isolamento político em relação a alguns parceiros europeus, muito embora isto não se veja necessariamente em termos económicos na óptica de Ivo Sobral, coordenador de mestrado de Relações Internacionais na Universidade de Abu Dhabi.

"Esse isolamento ocidental, eu acho que não é uma realidade porque a grande maioria das empresas internacionais da Turquia têm importantes e fortes parceiros europeus, em particular com países como a Alemanha, a própria França e a Áustria. Esse isolamento europeu se calhar é um isolamento político mas na "realpolitik económica" a Alemanha não pode viver sem a Turquia e a Turquia não pode viver sem a Alemanha em termos económicos. Agora em termos políticos, talvez -sim- exista algum isolamento por parte da Turquia em relação à Europa" começa por considerar o investigador.

"A questão da forte crise económica da Turquia é um crescendo neste último ano, uma desvalorização maciça da própria Lira turca assim como os próprios mercados de investimento" refere ainda Ivo Sobral ao especificar que "a Turquia é um gigante industrial com uma forte base de produção até de produtos bastante sofisticados e que precisa de novos mercados, com este isolamento não só da Europa mas talvez até de mercados mais tradicionais para a Turquia como o próprio Médio Oriente, como os países do Golfo que até muito recentemente tinham uma política bastante isolacionista em relação à Turquia. Só muito recentemente é que algumas destas barreiras de comércio aos produtos turcos foram levantadas no Golfo. Países como a Arábia Saudita, como os próprios Emirados, Oman, Barein e o Koweit sempre foram grandes mercados para os produtos turcos e apesar deste isolamento agora estar a ser levantado lentamente, a Turquia ainda necessita destes novos mercados que estarão obviamente em África, países como o Sudão, a própria Nigéria, vários países norte-africanos que são naturalmente zonas que podem absorver esta grande produção de produtos turcos e de novo energizar a economia turca que está em grave declínio."

Ao evocar o mercado da Defesa que é uma das fortes apostas da Turquia no continente africano, o analista refere que "África é um grandíssimo mercado para os produtos militares turcos. A Turquia continua a ser um país que tem uma grande dose de investimento em tecnologia militar e uma dessas mesmas faces da Turquia é o seu desenvolvimento tecnológico em termos de drones de combate. Os drones de combate turcos, neste momento, são considerados um dos mais desenvolvidos mundialmente, se calhar atrás dos drones feitos nos Estados Unidos, na China e na Rússia, mas à frente de países europeus como a própria França, a Alemanha ou a Inglaterra. Aliás, muito recentemente, a Inglaterra e a Polónia iniciaram conversações com a Turquia para fazer a aquisição de drones de combate turcos. Portanto, estes mesmos drones provaram a sua eficiência não só na Ásia Central, no Caucaso, no conflito entre a Arménia e o Azerbaijão que este último ganhou com a ajuda crucial dos drones de combate turcos. Igualmente no conflito da Líbia, estes mesmos drones turcos fizeram a diferença no campo de batalha."

Questionado sobre o facto de a utilização dos referidos drones na Líbia terem servido de 'montra' para vender material militar turco em África, Ivo Sobral considera que efectivamente "foi mesmo na Líbia que os drones turcos provaram a sua superioridade por exemplo em comparação com os drones chineses, um dos concorrentes que os turcos venceram. Este foi só um dos produtos que África está ansiosa para comprar. Países como o Sudão, como a própria Etiópia, mas também outros países como Angola, a Nigéria e África do Sul, o continente sempre foi um grande mercado para este tipo de tecnologias. Outros países também com profundos investimentos em Defesa com a Argélia ou Marrocos poderão no futuro também fazer aquisições de drones turcos. Mas os drones são somente uma parte do gigantesco investimento militar que a Turquia fez nos últimos -pelo menos- dez anos. Coisas como o próprio treinamento, as tropas turcas na Líbia provaram ser capazes de treinar e preparar para o combate forças africanas locais. Há também esta possibilidade de a Turquia providenciar serviços de treino. Há também um grande mercado em termos de armas ligeiras turcas. A Turquia é um grandíssimo produtor de armamento individual, espingardas automáticas, pistolas com preços muito competitivos e todo um equipamento com o 'standard NATO'. Estamos a falar de equipamento NATO com preços muito inferiores aos preços normalmente praticados por países como a França, a Bélgica ou a Alemanha."

Relativamente à perspectiva de a Turquia vender mais armas à Etiópia numa altura em que há fortes indícios de crimes de guerra no campo de batalha do Tigray, no norte, o investigador recorda que "a Turquia não tem um historial de respeito dos Direitos Humanos, nunca teve, particularmente nos últimos dez anos. Portanto, isto não será um problema para o governo de Recep Erdogan. A Etiópia neste momento é uma zona bastante problemática, está inserida também numa geografia bastante importante para África e para o Médio Oriente e está dentro do chamado 'Jogo do Mar Vermelho', um jogo que a Turquia está também a jogar para o controlo de uma via de comércio e uma via de escoamento de produtos mundiais. A Turquia nesta zona está a combater não só antigos inimigos como o Egipto mas também potências emergentes como os Emirados Árabes Unidos ou como a Arábia Saudita, assim como os Estados Unidos, a China, o Japão e vários países da Comunidade Europeia que construiram bases também no Mar Vermelho." 

Sobre as intervenções a nível político para tentar mediar o conflito na Etiópia, o especialista dos países árabes refere que "existem muitas movimentações diplomáticas em particular do Golfo e do Médio Oriente em geral para tentar resolver várias crise internas da Etiópia. Existem outros 'players' internacionais que chegaram na Etiópia, como o Irão que está a fornecer drones ao actual governo etíope. A Turquia, numa jogada para impedir esta ponte iraniano-etíope, está a tentar interromper estes fluxos", Ivo Sobral considerando que "será possível, sem dúvida (porque) a Turquia possui muito mais capacidade do que o Irão neste tipo de armas e é muito mais agressiva e mais eficiente do que o próprio Irão."

Ao debruçar-se sobre outra área em que a Turquia tem vindo a impôr-se, o 'softpower', o universitário considera que "a real ofensiva da Turquia em África e no Médio Oriente, tem sido o seu 'soft power' cultural e religioso. Na questão religiosa, uma coisa relativamente recente nos últimos anos na Turquia, inicialmente foi o movimento de Gülen que com o apoio do governo turco fez uma ofensiva em África, colaborou agressivamente, expandiram-se em África em vários países, não só no norte de África mas também outros países, abrindo centros culturais turcos, centros de estudos da Língua e da cultura turca, assim como trazendo a sua específica visão do Islão. Após o golpe de Estado e a separação entre Erdogan e o movimento de Gülen, houve obviamente uma nova ofensiva turca desta vez implementando os seus organismos específicos de cultura turca para se expandir em África. Não só temos a questão religiosa e cultural a ser importante, mas também temos uma forte ofensiva de 'charme' que é 'soft power' contemporâneo com por exemplo produções de televisão muito importantes feitas em Istambul que tiveram um grande sucesso em África. A produção audiovisual da Turquia é enorme e todas as séries feitas em Istambul têm uma grande aceitação cultural em África e isto é muito importante. A Turquia conseguiu fazer uma imagem de marca diferente, uma Turquia moderna, avançada e que continua a ser muito eficiente".

Paralelamente, ao comparar a Turquia com outros parceiros regionais, como os Estados Unidos, a China ou a União Europeia, Ivo Sobral considera que Ancara tem uma vantagem inegável nos sectores religiosos e culturais, domínios em que "terá uma penetração muito maior por exemplo em zonas como o norte de África e até no Corno de África, zonas maioritariamente muçulmanas, sendo que esta conexão religiosa e cultural são muito importantes para a Turquia, e é uma superioridade à qual nenhum outro 'player' internacional será capaz de fazer frente. Depois existem outros 'players' talvez mais fortes economicamente como a China. Ninguém consegue fazer frente à China em África. Quanto à União Europeia é um pouco um não-jogador porque apesar de existir no papel, a sua política Africana tem muitos planos mas tem pouca actuação. Normalmente são países que possuem uma vertente mais Africana como a França que pressionam para uma maior intervenção da União Europeia, mas se olharmos por exemplo para o caso da Líbia (...) não houve nenhuma tentativa de unificação desta grande política europeia. Isto é uma fraqueza enorme da União Europeia e a Turquia joga neste vazio da União Europeia (...) Obviamente em certas zonas específicas como a África Ocidental Subsariana, países como a França continuam a ser mais importantes, mas em zonas como o norte de África e África Oriental, o jogo já foi perdido há muito tempo em relação à Turquia. A aproximação entre a China e a Turquia é também algo muito importante, a China vê na Turquia um parceiro futuro para escoar os seus produtos para a Europa e uma cooperação turco-chinesa em África é um pesadelo autêntico para muitas capitais europeias".

Quanto às expectativas que poderão existir em torno do Fórum África-Turquia, Ivo Sobral antevê que "existirão bastantes acordos, muitas proclamações dramáticas, um grande 'show' teatral de acordos e de cooperação, uma série de contratos militares ou pelo menos anúncios possíveis e muito provavelmente alguns contratos específicos em termos de produtos e de fábricas turcas que poderão ser implementadas em África", uma vez que para o investigador "esta cimeira obviamente tem um objectivo que é o de fortalecer internamente o governo de Erdogan porque a Turquia está a passar uma enorme crise económica. Basicamente em um mês todas as coisas na Turquia ficaram mais caras 30% e a base de apoio político a Erdogan começa a ficar bastante desgastada. Há uma erosão grave deste apoio e internamente é necessário demonstrar que a visão pan-otomana de uma grande potência regional com ambições internacionais é uma realidade e penso que será esta a imagem que tenciona passar", conclui Ivo Sobral.

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