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Angola: "No racismo, todos somos chamados a actuar"

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Uma estátua de um anjo branco a pisar um homem negro que esteve à entrada de um hotel em Malanje reacendeu o debate sobre o racismo em Angola.O caso motivou um abaixo-assinado que foi subscrito por várias figuras públicas, entre elas Domingos Cruz, professor universitário e investigador angolano.

Manifestantes antirracismo numa manifestação.
Manifestantes antirracismo numa manifestação. AFP
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Como é que esta situação foi tornada pública?

Basicamente, uma pessoa que esteve hospedada no hotel deparou-se com a estátua, fez um vídeo, publicou e aquilo começou a ser partilhado nas redes sociais. Imagino que ele deverá ter colocado na sua página de Facebook e foi a partir desta via que eu e outras pessoas tomámos conhecimento da existência da estátua no interior de uma das salas do hotel.

Quais foram as reacções a esta estátua nas redes sociais?

Alguns entenderam que de facto se tratava de um acto inaceitável, uma expressão clara de racismo e também houve reações de pessoas que disseram: ‘Oh, isso é normal. Trata-se inclusivé de um símbolo de fé'. Eu tenho a impressão de que as pessoas não têm, digamos, a consciência crítica suficiente para perceberem o alcance do imaginário. Não conseguem perceber a história e a origem destas obras de arte e o que é que isto produziu do ponto de vista do imaginário na relação interracial.

O caso motivou um abaixo-assinado que foi subscrito por várias figuras públicas. Considera que este documento conseguiu o seu principal propósito, uma vez que a estátua acabou por ser removida?

Sim, nós expressámos claramente que o nosso propósito era a remoção da estátua e ela foi removida. Nesse sentido, alcançámos o objetivo. Após a remoção da estátua, alguns membros subscritores terão pensado na necessidade de exigir que a estátua fosse destruída e eu particularmente subscrevo também. Ela está ali e certamente que eles a terão escondido em algum lugar. Quem sabe, em outro momento, poderão usá-la, se calhar também em outro sítio. Tem de se ver o racismo como um problema legal e é por isso, baseado na pressão dos últimos anos, que o novo código penal angolano, recentemente aprovado, já introduz o crime de racismo com uma moldura penal de 2 anos, claro, bastante fraquinha. Devia ter sido muito mais corajosa e consistente. De acordo com o sistema penal angolano, as penas de 1 a 2 anos são traduzidos em multa. Isso significa que dificilmente os criminosos serão efectivamente responsabilizados.

Este é um exemplo claro de um racismo consolidado em Angola?

Não há dúvidas. Nós somos um país profundamente colonizado no sentido, digamos, psicológico. Infelizmente, terá havido uma opção política de silenciamento de modo a que não se pudesse debater a questão. Os actos de racismo estão ali, acontecem, há imensos casos. Muitos deles têm sido elencados e estudados. Isso expressa aquilo que efetivamente está lá, que acontece. Infelizmente, parece não haver preocupação, refiro-me de uma forma geral, a toda a sociedade. Eu diria que é preciso política pública com vista a desconstruir isso. Este problema só será ultrapassado quando existir uma elite consciente da necessidade de descolonizarmos.

Esta escultura é arte ou por outro lado a humilhação de uma raça?

Todo o trabalho artístico é fruto do seu tempo e de um contexto. No período em que o trabalho terá sido feito estava bastante clara a ideia segundo a qual o negro representa o diabólico, o feio, o negativo e o que é branco representa a expressão da mais alta beleza, de pureza e de tudo o que é bom. 

Nós não podemos usar estas obras que foram feitas com um propósito claramente de negação da humanidade do outro, glorificando-a em pleno século XXI.

É uma obra que expressa claramente uma narrativa contra aquilo que é a mentalidade contemporânea. Estamos a tentar ultrapassar isso um pouco por todo o mundo, mas infelizmente ainda existem pessoas reacionárias, conscientes, mas, por outro lado, há outras que usam isso por ignorância, sobretudo quando são negras. Neste hotel há um grosso de trabalhadores negros. Imagino que deviam ter reagido e não reagiram. Uns inclusivamente dialogaram connosco e disseram: “Ah, não. Nós somos pessoas de fé. Isso para nós representa a nossa fé’ e eram negros que de facto se pronunciavam nestes termos. Neste sentido, estamos perante a ignorância.

Como é que se resolve este tipo de situações? É culpabilizando quem pratica o racismo ou por outro lado encontrado soluções através do debate?

Temos de debater a todos os níveis. É preciso alargar o nível do debate à comunicação social, tal como se está a fazer aqui agora e levar isto para o sistema de educação formal e informal. Eu acho que é o debate que nos permite ultrapassar esta questão. Aliás, está mais do que provado que, ao longo da história da humanidade, nenhum problema será ultrapassado se não for discutido. Eu estou total e absolutamente convencido de que é necessário debate sobre essas questões.

O racismo é um problema estrutural, institucional, mas também individual, por isso é que há responsabilização moral e jurídica sobre aqueles que cometem o crime de discriminação racial ou étnica. É uma narrativa que foi construída com muitas fontes de sustentação: religiosas, económicas, políticas e científicas, por exemplo. Existem tantas bases que sustentaram o racismo e por isso a solução passa por questionar todas essas bases e, portanto, não podemos apontar um só campo como causa da permanência da discriminação racial. Nesse sentido, todos nós somos chamados a actuar, independente da área onde estejamos porque o racismo é intersecional, sem dúvida. Toca em quase todos os aspectos e dimensões da sociedade.

Em Angola continuam a existir episódios de racismo explícitos?

Há casos de racismo explícitos. Os angolanos são sobretudo vítimas de mulheres e homens brancos que saem de outros países e vão para Angola e também de angolanos brancos que por força da história (da colonização em particular) interiorizaram toda essa narrativa da superioridade racial. Eu diria que parece uma enfermidade do ponto de vista psicológico e vai fazendo vítimas.

Acha que obras semelhantes a esta que estava patente em Malanje, que estão espalhadas pelo mundo, também deveriam ser retiradas?

Sim. Deveriam ser retiradas e, se calhar, agrupadas num espaço específico onde poderíamos contextualizá-las. É preciso uma revisão estética dessas obras com uma base histórica. Há necessidade de colocá-las num lugar onde possam ser contextualizadas e explicadas de modo a que as pessoas possam ter consciência do que se passou e interiorizarem a lógica do nunca mais. É preciso não esquecer que isto aconteceu, visou glorificar um grupo e fez mal à humanidade como a conhecemos ontem e hoje. É importante pensar nisto para que não se volte a repetir.

Acha que o racismo é um problema sem solução à vista?

Sim. Eu francamente não acredito que isto terminará. Nós podemos de alguma maneira diminuir consideravelmente o número de actos criminosos dessa natureza, podemos tornar a sociedade moralmente mais elevada no sentido de estabelecermos relações interraciais mais harmónicas, em termos quantitativos e qualitativos, mas não me parece que seja algo que possamos acabar.

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