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2020: Um ano para esquecer?

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A pandemia de Covid-19 dominou o ano que fica para trás, mas as violências policiais, o racismo, os ataques à liberdade de expressão, o afastamento de Donald Trump da Casa Branca e a consumação do divórcio entre o Reino Unido e a União Europeia foram alguns dos outros temas que marcaram 2020. A activista e professora de Filosofia Luísa Semedo fala em “ano de loucura” que foi “um teste à sociedade”.

Cidadão francês durante protesto em Nantes, a 30 de Junho de 2020.
Cidadão francês durante protesto em Nantes, a 30 de Junho de 2020. AFP - LOIC VENANCE
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A pandemia de Covid-19 foi, sem dúvida, o tema incontornável que impôs a todos, e em todo o mundo, um novo glossário quotidiano: coronavírus, pandemia, confinamento, isolamento, recolher obrigatório, distanciamento social, máscaras, gel hidroalcoólico, crise sanitária, crise económica e crise social foram algumas das palavras que passaram a fazer parte do nosso dia-a-dia. A pandemia fez mais de um milhão e setecentas mil vítimas mortais no planeta, foram registados acima de 80 milhões de casos e começou a primeira fase de vacinação. Algo que fez de 2020 um “ano de loucura” e “um teste à sociedade”, na análise de Luísa Semedo, professora de Filosofia e activista luso-cabo-verdiana a residir em França.

Foi um ano de loucura. Foi um ano completamente inédito. É verdade que já havia algumas previsões de que poderia haver, a dado momento, uma pandemia com vírus etc, mas as previsões são uma coisa e acontecer foi, de facto, inacreditável”, começa por resumir.

Foi também um teste à sociedade que somos, podemos ver a nível internacional tudo o que são questões de cooperação, por exemplo, mas também podemos ver os limites com as fronteiras a fechar, com algum egoísmo em relação à questão das vacinas e também podemos ver quais as funções que eram indispensáveis numa sociedade, ou seja, aquelas pessoas que tiveram de continuar a trabalhar – os enfermeiros, as pessoas dos supermercados, etc, etc.

A crise sanitária provocou uma crise económica devido aos confinamentos mundiais que travaram, sobretudo, o sector do turismo, da restauração e da cultura. Luísa Semedo sublinha que a luta continua em França porque “ainda está tudo fechado a nível da cultura”, algo que se explica não apenas pelas “exigências sanitárias”, mas também pela “vontade política”.

Nem todos os países fecharam a parte cultural. Em França foi visto, de alguma forma, como chocante esta ideia de que alguns domínios eram essenciais, como o tabaco ou a religião e que a cultura não era. Sim, isso causou muita perplexidade num país que se diz um país de cultura”, continuou a professora de Filosofia.

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2020: Um ano para esquecer? As respostas com Luísa Semedo, professora de Filosofia

Ainda em França, o ano ficou marcado por imagens de violências policiais, nomeadamente contra um produtor de música negro, e pelo polémico artigo 24 do projecto de lei para a segurança global. As violências policiais ecoaram com a morte de George Floyd nos Estados Unidos, em Maio, e que foi seguida por mega protestos e motins. Em Portugal, o actor luso-guineense Bruno Candé também morreu vítima de racismo.  Uma realidade ainda muito presente em 2020.

É uma realidade crua e dura, não nasceu ontem, já vem de há muito tempo, mas agora é filmado e é partilhado pelo mundo inteiro e portanto tem outro impacto. Há também o facto de haver agora uma nova geração mais preparada para não estar só na sobrevivência e poder falar sobre estas questões do racismo”, explica a activista.

Quanto à polémica lei para a segurança global que levou milhares de manifestantes para as ruas francesas, Luísa Semedo sublinha que “o governo em vez de tentar que as pessoas que são vítimas de violência sejam protegidas, está a tentar fazer leis para se proteger a ele próprio e às suas forças de segurança”.

Ainda em França, houve novos atentados para nos lembrar que a ameaça terrorista não desapareceu. Houve um ataque contra o professor Samuel Paty que mostrou caricaturas do Charlie Hebdo e um novo ataque contra o semanário satírico. Luísa Semedi lembra que o Presidente francês defendeu a liberdade de expressão quando Samuel Paty foi decapitado, mas que está agora a ameaçar essa mesma liberdade com o projecto de lei para a segurança global.

O ano fica, ainda, marcado pelo afastamento de Donald Trump da presidência norte-americana, pela vitória do democrata Joe Biden e pela chegada, pela primeira vez, de uma mulher, Kamala Harris, à vice-presidência dos Estados Unidos. No entanto, as perspectivas não são as melhores.

A desinformação está a ser cada vez mais forte nos Estados Unidos e é partilhada pelo ainda Presidente dos Estados Unidos. A desinformação em geral leva a que muitos dos seus apoiantes radicalizem o seu pensamento e os seus actos, a lançarem-se nos braços da internet da desinformação, da manipulação, da extrema-direita, etc. Eu estou muito preocupada com isso. Vai ter de haver um trabalho muito importante da administração Biden para poder tratar desta questão que está a sair fora do controlo completo na América mas também no mundo.”

Depois do Brexit a 31 de Janeiro de 2020, o ano ficou também marcado como o período de transição para as negociações sobre a futura relação entre o Reino Unido e a União Europeia, negociações tiradas a ferros. “Em geral, é um problema para a União Europeia apesar de tudo. Há aqui este acordo, mas tem que haver uma reflexão mais profunda para que não volte a acontecer, para que não haja a derrocada da União Europeia e que outros países possam ir pelo mesmo caminho.”

O ano foi marcado por perdas de personalidades de vulto, a começar pelo filósofo e ensaísta português Eduardo Lourenço, mas também pela cientista e imunologista Maria de Sousa, o escritor chileno Luís Sepúlveda, o músico camaronês Manu Dibango, o “pai” do Asterix Albert Uderzo, o “pai” da Mafalda - Quino, a escritora portuguesa Maria Velho da Costa, o compositor italiano Ennio Morricone, os cantores franceses Juliette Gréco e Christophe, os actores franceses Michel Piccoli e Michael Lonsdale, o actor britânico Sean Connery, o artista Christo, o estilista japonês Kenzo Takada, o futebolista Diego Maradona, o antigo presidente francês Valéry Giscard d’Estaing, entre muitos outros.

Uma das perdas mais marcante é a de Eduardo Lourenço porque simboliza “uma época e uma geração que está a desaparecer e que não pode ser substituída”.

É uma geração que tinha uma relação diferente com o tempo - com o tempo do conhecimento porque o conhecimento leva tempo e não é esta instantaneidade de reacção nas redes sociais. Era uma outra profundidade de pensamento - independentemente de eu estar ou não de acordo com ele - mas era admirativa e continuo a ser admirativa do seu método. É um método que eu gosto, que é o método da Filosofia, que é um método de tempo, de tentar aprofundar as ideias. Também muito interessante era a circulação das ideias. O pensamento de Eduardo Lourenço era lido noutros países, apesar de ele se preocupar com questões da Portugalidade, as suas ideias circulavam pelo mundo, eram muito conhecidas também em França e isso é algo que é muito interessante. Nós estamos a viver com as novas direitas radicais ou extremistas, estamos a viver um momento de anti-intelectualismo que é muito perigoso e, portanto, para mim Eduardo Lourenço era tudo menos isto. Ele era o anti-‘anti-intelectualismo’. É uma perda grande para todos nós”, conclui Luísa Semedo.

 

 

 

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