Acesso ao principal conteúdo
Ciência

"Investigação científica em Angola requer mais do que investimento financeiro"

Publicado a:

Teresa Matoso Victor, cientista angolana e professora sénior de engenharia química no Instituto Superior Politécnico de Tecnologias e Ciências (ISPTEC) de Luanda, ganhou destaque no mundo da pesquisa científica. No ano passado, foi vencedora do Prémio Internacional de Melhor Pesquisa Química e desenvolvimento de Antibióticos, graças à pesquisa de “produção e avaliação de dois antibióticos sob fermentação em estado sólido, utilizando uma cultura micro-porosa”.

Teresa Matoso Victor, cientista angolana e professora sénior de engenharia química, foi vencedora do Prémio Internacional de Melhor Pesquisa Química e desenvolvimento de Antibióticos, graças à pesquisa de “produção e avaliação de dois antibióticos de Streptomyces coelicolor A3(2), prodigiosina e actinorhodina sob fermentação de estado sólido, utilizando uma cultura microporosa”.
Teresa Matoso Victor, cientista angolana e professora sénior de engenharia química, foi vencedora do Prémio Internacional de Melhor Pesquisa Química e desenvolvimento de Antibióticos, graças à pesquisa de “produção e avaliação de dois antibióticos de Streptomyces coelicolor A3(2), prodigiosina e actinorhodina sob fermentação de estado sólido, utilizando uma cultura microporosa”. AFP/File
Publicidade

Contando com um sólido currículo que evidenciam a sua experiência no ramo, a cientista angolana Teresa Matoso Victor, vem ganhando cada vez mais destaque na área da investigação científica. Desde muito jovem vive fora do país, tendo se mudado para Cuba em 1984 aos 13 anos, onde completou uma boa parte do seu percurso educativo, demonstrando uma grande preferência e aptidão pela química, matemática, física e biologia. Posteriormente, licenciou-se em Engenharia Química pela Universidade de Northumbria, concluiu o mestrado em Engenharia Química Sustentável e o doutorado em Engenharia Química pela Universidade de Newcastle, no Reino Unido.

Desde o seu regresso a Angola, em 2019, tem participado de diversos projectos e também trabalha no Instituto Superior Politécnico de Tecnologias e Ciências (ISPTEC) de Luanda, onde lecciona as disciplinas de Introdução a Engenharia Química, Cálculo de Reactores e Engenharia de Processos. Em 2022 teve o seu trabalho reconhecido ao ser galardoada com o Prémio Internacional de Melhor Investigadora em Engenharia Química e Biotecnologia, pela Sociedade Internacional para as Redes Científicas e pelo Congresso Internacional para a Ciência e Tecnologia, na qualidade de melhor pesquisa química e desenvolvimento de antibióticos.

Em entrevista à RFI, a cientista e investigadora angolana conta que este prémio foi o reconhecimento de um conjunto de trabalhos de mais de duas décadas, que começou pela descoberta deste material microporoso, que não para por aqui: Teresa espera ver as farmacêuticas adoptarem a sua técnica.

Este prémio na verdade significa um conjunto de trabalhos de mais de duas décadas que fui fazendo. Este prémio significa que o trabalho que eu fiz durante o meu doutoramento começou primeiro pela descoberta do material microporoso, um material inerte, um material com alta hierarquia estruturada de poros. Todas as propriedades tornaram este material versátil e candidato a várias aplicações. Então este prémio significa o reconhecimento de todo esse trabalho árduo que fui fazendo e especificamente na produção de antibióticos, é só uma das aplicações deste material microporoso. Neste caso o material foi utilizado como um micro-bioreactor para a produção de antibióticos, e trouxe uma aceleração na produção de antibióticos e é uma das estratégias que gostaríamos nós de ver as farmacêuticas adoptarem porque acelera a produção de metabolismo secundário no geral e não só de antibióticos.

Então este prémio veio mais ou menos consolidar todo esse trabalho árduo que eu fui fazendo. Aliás este material já foi patenteado, teve duas patentes internacionais, então este prémio veio mais uma vez mostrar que o que eu fui fazendo ao todo em mais de duas décadas é um trabalho que tem um significado científico muito elevado

10:44

Entrevista com a investigadora angolana Teresa Matoso Victor, 01/08/2023

Durante o seu doutoramento começou um projecto de pesquisa e desenvolvimento na intensificação da produção de antibióticos, que culminou na descoberta de um material microporoso, inerte e com uma alta hierarquia estruturada de poros, resultando na criação de duas patentes, como indica a sua biografia: uma primeira em que o material tem múltiplas aplicações, nomeadamente na saúde e na “separação de partículas em caso de derrame de petróleo bruto”, mas também a “mitigação dos seus efeitos no meio ambiente”, além de poder ser utilizada na “imobilização de microorganismos para a produção de antibióticos, proteínas, enzimas”, entre outras; uma segunda patente direccionada ao sector da “agricultura e no melhoramento qualitativo de solos, rios e lagos poluídos”.

Pergunta: Como se deu todo este percurso, e estima que houve algum reconhecimento por parte do Estado angolano?

Teresa VictorSim. Podemos dizer que depois que eu recebi este prémio, que veio depois das patentes, porque eu tive todo o meu tempo a viver na Inglaterra, mesmo depois de ter terminado o doutoramento. Fiquei dez anos a trabalhar na Universidade de Newcastle, primeiro como pesquisadora associada por cinco anos e posteriormente comecei a trabalhar numa multinacional, a Nutriss, que tratava de explorar as propriedades intelectuais da universidade e usando também este material, que é o mesmo material como já disse anteriormente, é versátil, mas a Nutriss alia este material para a agricultura. Teresa Matoso estima que o Estado angolano reconhece o seu trabalho, algo que é evidenciado pelas múltiplas bolsas de estudo que pôde beneficiar, mas também a oportunidade de se reunir com o executivo.

Sendo assim, e eu vendo a situação de Angola que é um país altamente agrícola e que já se começou a falar de diversificação económica desde 2017, então eu decidi também trazer este material, esta tecnologia inovadora para Angola. Quando chego a Angola, depois de uns meses deparamos nos com o COVID.

Pergunta: E o COVID de certa forma impactou a aplicação desta inovação?

Teresa VictorSim porque eu que consegui fazer uma apresentação. Este material, como já pude explicar, é um material inerte, um material com uma alta hierarquia estruturada de poros, então eu cheguei à conclusão que se este material consegue adsorver altas quantidades de líquido e adsorver grandes quantidades de partículas, então este material pode ser utilizado como corpo hospedeiro para podermos capturar os vírus, e nesse caso, estudarmos a genética dos vírus. Mas como era uma temática nova, principalmente do COVID, que era um vírus novo que se tinha pouco conhecimento acerca, mas fui dando opiniões no como nós podemos lidar com este vírus. E posteriormente decidi fazer um artigo científico que é parte da minha tese, que neste caso o artigo era produção e avaliação de dois antibióticos de Streptomyces coelicolor A3 (2) que neste caso é a bactéria que sintetiza dois antibióticos, e esses dois antibióticos que são a prodigiosina e actinorodina. Nós tivemos a chance de trabalhar com alguns microorganismos para podermos ver a inibição destes antibióticos a estes microorganismos. Parecendo que não este trabalho teve um grande impacto na comunidade internacional, foi daí que me foi concedido o prémio internacional de melhor pesquisadora em engenharia química e biotecnologia.

Depois disso o governo angolano reconheceu-me. Aliás, recentemente, dia quatro de Abril, fui condecorada pela sua excelência o Presidente da República, o presidente João Gonçalves Manuel Lourenço e foi dando todo este apoio por parte do nosso executivo. Penso eu que em termos de apoio do executivo não me tem faltado, só preciso de formar uma equipa forte e multidisciplinar para que possamos pôr em prática essa tecnologia inovadora.

Entretanto a investigadora teve a oportunidade de se encontrar com a vice-presidente da República ,a professora doutora Esperança da Costa, com quem teve a oportunidade de conversar na vertente da investigação científica. Não obstante, quando questionada sobre o estado da profissão em Angola e se existem condições para assegurar a evolução da área, por forma a ajudar o país a colmatar os seus problemas, a cientista angolana afirma que somente haverá espaço para a progressão se houver uma mudança na mentalidade dos angolanos, nomeadamente pela sociedade e os demais pares de profissão.

Eu estimo que as condições vamos ter de preparar, pois, ainda temos muitos desafios. Muitas das vezes o desafio nem é parte do executivo, é mesmo parte nossa pois temos de mudar a mentalidade das pessoas, nomeadamente o desacredito sistemático que as pessoas fazem na capacidade dos seus próximos semelhantes, a dificuldade em reconhecer o nível de outrem, a desvalorização de tudo o que é endógeno. Então eu acho que temos de trabalhar com a mentalidade e acreditar que nos também podemos. Por exemplo, quando se fala de cientista as pessoas dizem que um “cientista angolano/a não existe. Então temos de trabalhar com a mentalidade antes de pensarmos em apoios

Eu acredito que há talento em Angola. Neste momento estando eu a leccionar no ISPTEC consegui perceber que existem vários talentos aqui, mas o que eu percebi é que precisamos de trabalhar com a mentalidade dos angolanos, pois se nós próprios não acreditamos nas nossas capacidades ninguém vai acreditar.

Voltando à questão dos antibióticos. O mundo acaba de passar por um período complicado devido à pandemia. Especialistas do mundo inteiro estimam que a COVID-19 seria apenas uma de muitas pandemias que se produziriam nos anos vindouros, perspectivando um incremento na frequência, mas também na velocidade de contágio e do grau de resistência das mesmas.

Pergunta: como estima que será a evolução dos vírus nos próximos anos? Existe alguma forma eficaz de combatê-la?

Teresa Victor: Nós sabemos que os vírus estarão sempre em mutações até porque os vírus mutam muito mais facilmente que uma bactéria, então os vírus estando constantemente em mutações, nós também temos de ser rápidos em estudar a MAI, o vírus originador do próximo vírus. Por isso é que há uma necessidade em juntarmos equipes multidisciplinares para que não nos apanhem desprevenidos. Olhando bem para a minha área que é a produção de antibióticos, nós sabemos que há bactérias que estão a ser resistentes aos antibióticos, então por isso é que há uma necessidade em continuar-se a fazer descobertas porque a última vez que se descobriu um antibiótico foi em 1987. Então temos de dar mais atenção à investigação científica, e quando se fala em investigação científica tem de se dar mais atenção em trabalhar em equipes multidisciplinares para que nós possamos resolver essas situações, porque os vírus antes de encontrarem um corpo hospedeiro, são simplesmente partículas. Então se nós juntarmos uma equipe multidisciplinar, alguém que entenda como funciona uma partícula, alguém que entende como funcionam os vírus quando vão para um corpo hospedeiro, nós vamos poder dar melhor a resposta. É por isso é que eu naquela altura quando vi os vírus, e vi que: se os vírus antes de encontrarem um corpo hospedeiro são simplesmente uma partícula, então nós temos de encontrar um corpo hospedeiro onde podemos capturar esse vírus e poder retirar o seu material genético e fazer os estudos. Mas depois vamos ter de continuar a fazer o estudo das mutações porque eles mutam facilmente. É a lei da natureza.

Quando à questão dos antibióticos, vemos que o continente africano é, em parte – mas não o único, um dos mais afectados por doenças que podem ser mitigadas por certos antibióticos. Nota-se que na maioria das vezes, muitos países dependem de “lotes” internacionais provenientes de donativos para conseguir prover estes medicamentos à população.

Pergunta: estima que é possível produzir e comercializar antibióticos a nível local por forma a reduzir esta dependência?

É possível, é possível. Porque nós temos que ver a matéria-prima da produção de antibióticos. Por exemplo, quando comecei a fazer esse trabalho, comecei pelo fato que a maior fonte de produção de antibióticos é no solo. Então se a maior produção de antibióticos é no solo aí pensei: vou fazer uma mímica do solo. Por isso é que este material microporoso é uma mímica do solo do ambiente natural me que os antibióticos vivem. Então nós podemos fazer isso em qualquer parte. É só termos os equipamentos necessários. Quer dizer, se tivermos em facto a descobrir um novo antibiótico nós precisamos de equipamentos mais sofisticados para poder detectar e verificar de que antibiótico se trata, como a HPLC (High Performance Liquid Chromatography). Mas se nós tivermos simplesmente que produzir e fazer a reprodução, não precisamos porque se já soubermos que o antibiótico é o antibiótico tal, então podemos produzir em qualquer parte do mundo. Isto é um problema global, e o problema que é que dos poucos antibióticos que existem, a maioria das bactérias estão a ser resistentes.

Este testemunho retrata a realidade do âmbito da pesquisa científica não somente em Angola, mas em muitos países do mundo. Por sua vez, Teresa Matoso Victor, espera continuar a trilhar os seus passos nesta profissão, sem nunca esquecer de apelar ao reconhecimento por parte da sociedade, mas também da indústria farmacêutica.

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe toda a actualidade internacional fazendo download da aplicação RFI

Ver os demais episódios
Página não encontrada

O conteúdo ao qual pretende aceder não existe ou já não está disponível.