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Artes

Viagem na 'Saudade' sentida e cantada por Kavita Shah em "Cape Verdean Blues"

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Hoje, mergulhamos no universo musical de Kavita Shah, jovem cantora, compositora e estudiosa de etnografia musical de Nova Iorque, com origens indianas. Formada em Harvard e fluente em 9 línguas, nomeadamente o francês, o espanhol, o português e o crioulo de Cabo Verde, Kavita Shah poderia ser descrita como uma pessoa guiada pela curiosidade.

Kavita Shah, na capa do seu novo disco "Cape Verdian Blues".
Kavita Shah, na capa do seu novo disco "Cape Verdian Blues". © https://www.folkalistrecords.com
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A sua curiosidade por outros mundos e outras culturas, uma curiosidade alimentada por uma infância numa família de editores indianos estabelecidos na Big Apple, vai levá-la muito nova a aprender o piano e a cantar num coro, antes de se impregnar das sonoridades dos lugares que vai conhecendo mais tarde, como o Brasil ou ainda Cabo Verde.

Cerca de 10 anos depois do primeiro disco com sonoridades jazz intitulado "Visions" e depois também de participar noutros projectos, Kavita Shah acaba de lançar nestas últimas semanas o seu novo disco, "Cape Verdean Blues", que como o nome indica é o fruto das suas andanças em Cabo Verde.

Antes de falarmos deste trabalho cuja musa é Cesária Évora e aquela suave nostalgia a que chamamos "saudade", decidimos fazer o percurso que levou Kavita Shah até Cabo Verde, porque o que interessa não é só o destino, é também a própria viagem. Uma viagem cuja primeira etapa foi o"Young People's Chorus of New York City", o coro infantil de Nova Iorque, quando tinha dez anos. Uma escolha "natural", conta Kavita Shah.

"Eu acho que foi uma coisa muito natural. Isso vinha de mim. Eu soube do coro através da minha escola que tinha um programa de música e o meu professor tinha dado um 'flyer' com informações para esse coro. Cheguei a casa, dei para os meus pais e todos os dias perguntava aos meus pais 'já ligaram ao coro? Já marcaram entrevista?' e eles respondiam 'ainda não, ainda não, vou fazer'. Eu, aos dez anos, não podia esperar mais e liguei. Acho que era uma vontade muito grande dentro de mim, era uma coisa de que precisava", conta a artista.

Ao recordar o seu primeiro contacto com a lusofonia, a cantora diz que foi através de uma canção brasileira aprendida na escola que, meses depois, acabou por cantar num palco, durante uma viagem a Goa. Era ainda uma menina.

"Os meus professores eram muito abertos ao mundo (...) uma canção que nos ensinaram foi samba de Orfeu de Luís Bonfa. Eles escreveram num português de maneira muito visível em inglês com 'K', 'Kero viver, Kero sonhar'. Então, tinha aprendido esta música, logo antes de ir ao coro, tinha 9 anos, e naquele verão eu fui à Índia com a minha família, para as férias (...). A minha família é de Mumbai, então passamos férias em Mumbai e fomos quatro ou cinco dias a Goa. Foi o meu primeiro contacto com um lugar lusófono (...). Como eu tinha conhecimento daquela canção, num barco turístico, eu subi ao palco onde estava um guitarrista e eu disse 'olha, sei cantar uma canção em português. Posso cantar contigo?'. Eu tenho uma foto daquela noite, comigo cantando (...).É muito mágico pensar nisso porque eu tinha apenas 9 anos", lembra a cantora.

Anos depois, então estudante de literatura, Kavita Shah, vai morar uns tempos para o Brasil. Esse período vai marcar uma viragem em vários sentidos, nomeadamente porque é nessa altura que vai assistir a um espectáculo que vai mudar a sua vida, um concerto de Cesária Évora.

"A Cesária veio cantar num festival de consciência negra no Brasil que decorria ao lado da minha casa. Eu já conhecia umas músicas dela, gostava muito, sentia que era interessante e diferente das outras músicas lusófonas que conhecia na altura, sobretudo brasileiras. Vê-la ao vivo, depois, foi outra coisa. Ela era uma artista muito especial, ela era muito confortável com ela mesma, estava descalça, bebendo Uísque, fumando, não estava a sorrir, não estava a dançar, não estava a fazer entretenimento. Ela só cantava do coração. Eu senti a autenticidade dela, a humanidade dela e ver uma mulher negra, forte, com aquela postura séria era para mim muito impactante", recorda a cantora que daí por diante, vai querer conhecer melhor as sonoridades de Cabo Verde.

Uma música cantada por Cesária Évora, 'Sodade' vai tocar numa corda sensível de Kavita Shah que vai incluir esse título no primeiro álbum "Visions" em 2014, bem como no seu novo trabalho "Cape Verdean Blues".

"'Sodade' virou um hino pessoal para mim (...), porque, só me dei conta disso muitos anos depois, acho que a sensação de saudade é uma sensação universal para quem, como eu, vive dentro de várias culturas, vive num espaço entre as coisas. Eu cresci com um sentimento de saudade na minha casa, que era uma saudade de um lugar que já não existe, a Índia dos meus pais, dos meus avós, que já não tinha aquela conexão (...). Depois, eu perdi o meu pai, eu tinha só 18 anos, ele era muito jovem, ele tinha só 46 anos, e logo depois, os meus quatro avós faleceram e eu não tenho irmãos, então foi muito súbito que eu perdi quase toda a minha família. Tinha saudade não só da cultura, mas também da minha vida", confessa a artista.

O sonho de conhecer Cabo Verde acontece finalmente em 2016. Aí, vai conhecer a família musical de Cesária Évora, nomeadamente o guitarrista Bau.

"Fui para fazer uma pausa da vida de Nova Iorque. Fui lá para conhecer, com uma mente aberta (...). Foi por coincidência que logo depois que eu cheguei, conheci o Bau que era não só director musical da Cesária Évora mas é um dos guitarristas mais importantes da tradição, sobretudo a Morna (...). Ele transmitiu isto para mim e nós íamos desenvolvendo um trabalho juntos, mas foi só para o prazer, para trocar ideias, para cantar juntos. Eu ia para a casa dele e passávamos horas a falar sobre música, a tocar várias coisas, a explorar", recorda Kavita Shah ao contar que foi um amigo que sugeriu a ideia de fazer um disco a partir das suas sessões de pesquisa com Bau.

Para além do conhecido guitarrista, "Cape Verdean Blues" também conta com os contributos dos artistas cabo-verdianos Miroca Paris e Fantcha, este disco colorindo com os tons da 'Morabeza" músicas vindas de outros horizontes, como "Flor de Lis" do artista brasileiro Djavan e "Chaki Ben", uma canção de embalar tradicional indiana. "Gosto muito de cantar esta canção com pessoas de outras culturas porque é uma canção fácil, dá para qualquer música entrar naquilo. É uma maneira de compartilhar a minha cultura, a minha família, com qualquer músico com quem esteja a trabalhar", diz a compositora.

Com 12 faixas, o disco tem estado a ser apresentado em concertos nos Estados Unidos e em Portugal, antes de seguir para Cabo Verde. Kavita Shah vai actuar nos dias 10 e 11 de Novembro na Cidade da Praia e no dia 17 no Mindelo antes de cantar no dia 2 de Dezembro na sala do "Bal Blomet" aqui em Paris.

Apesar de um ritmo "um bocadinho intenso, com muitos concertos", Kavita Shah tem outro horizonte, longínquo, mas que guarda num cantinho da mente: um disco que gravou há tempos com o seu quinteto. As sonoridades são jazz, com sabor a viagem.

"É um disco com muita inspiração da Índia e de uma viagem que eu fiz às aldeias ancestrais que estão na costa de Gujarate. Tive a sensação, quando eu fui lá, que eu já conhecia estas aldeias, mesmo que fosse a primeira vez que eu estava a ver, que estava conhecendo este lugar (...). Tive a sensação de que o meu caminho para conhecer a "minha saudade", para conhecer as minhas raízes, era normal não ir directamente de Nova Iorque para a Índia. Era normal para mim, ir através do Brasil, através de Cabo Verde, através de Portugal, através da França, para finalmente chegar lá. Era uma maneira de reconstruir a sensação de lar, a sensação de casa", diz a artista referindo contudo que, para já, não perde o foco. "Acho que vou precisar limpar um pouco a mente antes de mergulhar no mundo desse outro disco. Agora, estou 100% focada na música cabo-verdiana", diz num sorriso.

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