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Portugal / Madeira

Na Madeira as vias rápidas do desenvolvimento

Madeira – Em 40 anos, a Madeira passou de uma das regiões mais pobres de Portugal a uma das mais ricas. Uma metamorfose facilitada pelo desenvolvimento de uma impressionante rede rodoviária. 

A Madeira conta hoje com 600 quilómetros de estradas. Entre eles, 110 quilómetros de vias rápidas dão a volta à ilha.
A Madeira conta hoje com 600 quilómetros de estradas. Entre eles, 110 quilómetros de vias rápidas dão a volta à ilha. © François-Damien Bourgery / RFI
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Do nosso enviado especial

O KIA cinzento acaba de deixar Machico. Deixou para trás a praia de areia branca, as ilhas Desertas que se destacavam no horizonte e lá está ele encaminhado na via rápida. Direcção Porto da Cruz, a 10 quilómetros. O trajecto demorará 15 minutos, no máximo. Pelo lado de fora da janela  a ilha da Madeira só se vê de vez em quando. Mal se conseguem notar as montanhas arborizadas dentro das quais se aninham aldeias com os seus telhados de telhas e eis que o carro já entrou num outro túnel. O quarto túnel, desde que começámos a viagem.

Carina Carvalho vai conduzindo e conversando simultaneamente. Há cinco anos, esta antiga atleta criou uma escola de surf e de bodyboard. Baptizou-a "Madeira New Wave". Desde então, divide os seus dias entre o Funchal, a capital regional, Machico e Porto da Cruz, consoante o local onde as ondas estão melhores. Para limitar a quantidade de carros, ela própria assegura o transporte dos alunos. Ao todo, são duas horas e vinte por dia na estrada. Uma hora e meia a mais quando as condições oceânicas obrigam a ir até Seixal. "Agora, com a nova estrada, é fácil, relativiza. Ainda há cinco meses, era preciso ir até à Ribeira Brava para apanhar a via rápida que atravessa a ilha." 

Situada ao largo da costa marroquina, a ilha da Madeira foi dotada, a partir do início dos anos 90, de uma rede de vias rápidas.
Situada ao largo da costa marroquina, a ilha da Madeira foi dotada, a partir do início dos anos 90, de uma rede de vias rápidas. © Studio graphique FMM

Legenda: Situada ao largo da costa marroquina, a ilha da Madeira foi dotada, a partir do início dos anos 90, de uma rede de vias rápidas. 

 

Na Madeira, apenas o oceano continua a ditar a sua lei. A montanha, ela, foi domesticada pelos homens e as suas máquinas de construção. A menos que se aventure pelas pequenas estradas que serpenteiam pelas alturas, conduzir aqui resume-se a passar de um túnel para outro, já que são tão numerosos - 150 no total - e as estradas tão lisas. Nem um buraco, nenhuma asperidade; apenas uma grande faixa de asfalto, onde os veículos vão muito além dos 90 km/h permitidos. Seis vias rápidas cercam a ilha e outra atravessa-a de norte para sul. Todas foram construídas a partir dos anos 1990. Duas horas chegam para lhes dar a volta. "Sem estas estradas novas, nunca poderia ter desenvolvido o meu negócio", comenta Carina ao deixar os alunos à porta da sua pousada. 

 

"O maior térmite da ilha"

O artesão desta obra titanesca: Alberto João Jardim, ele foi presidente do Governo regional durante 37 anos. Aqui, é venerado ou detestado. Mas nem os seus detractores, que lhe imputam práticas clientelistas e quase ditatoriais, conseguem reprimir um sorriso ao evocar o seu nome. No Porto da Cruz, fotografias dele ornamentam o café-restaurante do José, conhecido até ao Funchal pelos seus deliciosos pratos de marisco. Sentado num canto da sala, um cliente diverte-se: "Sabe, em português, 'Madeira' quer dizer 'madeira'. Então, o Jardim, com todos os seus túneis, foi o maior térmite da ilha!"

Quando foi eleito pela primeira vez em 1978, a Madeira já era um destino muito procurado. Cerca de 150 000 turistas, ingleses na maioria, visitam-na todos os anos. Comparando com os 250 000 habitantes da ilha - sem contar com os 4 000 da vizinha ilha de Porto Santo - não é pouco. Reconheça-se que a pedra vulcânica situada ao largo de Marrocos possui vários trunfos: paisagens majestuosas, um clima eternamente suave e uma flora abundante que lhe vale o apelido de "Pérola do Atlântico". Mas o Governo local continua a apostar no turismo "de qualidade" que se tem desenvolvido desde o século XIX, concentrado no Funchal. É aqui que estão a maioria dos serviços públicos e os hotéis, nomeadamente o célebre Reid's onde ainda se veste de smoking nas noites de inverno. 

No resto da ilha, pelo contrário, faltava um pouco de tudo. Electricidade, água corrente, mas também escolas e professores. No Porto da Cruz, davam-se aulas nas salas de jantar ou nas garagens. Á sexta-feira, um carro passa a distribuir cassettes VHS nas quais estão gravadas as lições da semana seguinte. "Chamávamos a isso a tele-escola, conta sorridente o antigo professor João Paulo Ferreira, 21 anos na altura. Eu estava cá apenas para ajudar as crianças." A capital regional aparece como o fim do mundo. Duas horas pela montanha numa vaga estrada pavimentada. "Era mais rápido ir de avião até Lisboa que de carro até ao Funchal!"

Desenvolvimento total 

"Quando cheguei ao poder no Governo, o meu objectivo era o desenvolvimento integral: cultural, económico, social... e ambiental. Era impossível sem desenvolver as estradas", explica Alberto João Jardim, sentado na sala de estar da casa onde nasceu e que lhe serve também de escritório. Dois anos antes, a Madeira obteve de Lisboa o estatuto de região autónoma. Foi isto que permitiu a eleição de um Presidente e de uma Assembleia, a votação do seu prório orçamento e portanto, a possibilidade para o seu Governo de levar para à frente a sua política de desenvolvimento. A regra foi clara: chegar a todos os sítios habitados. Era preciso construir estradas agrícolas e turísticas para favorecer a criação de empresas e a circulação de produtos, permitir a cada um aceder à educação e à saúde e, sobretudo, unir o território, ligando as populações entre elas. É, no entanto, o discurso oficial.   

Alberto João Jardim, Presidente do Governo autónomo da Madeira entre 1978 e 2015.
Alberto João Jardim, Presidente do Governo autónomo da Madeira entre 1978 e 2015. © François-Damien Bourgery / RFI

Em 1986, a adesão de Portugal à União Europeia deu um novo impulso. Enquanto região ultraperiférica, estes territórios, distantes do continente mas altamente estratégicos, o arquipélago beneficia de importantes ajudas comunitárias. As empresas de obras públicas começam a funcionar ao ritmo máximo, transformando a "Pérola do Atlântico num queijo tipo "gruyère" de betão. A pista do aeroporto é ampliada para acolher mais turistas. Constroem-se escolas, piscinas, campos de futebol, complexos hoteleiros e caminhos pedestres. Constrói-se também uma marina, destruída duas vezes pelo oceano e finalmente fechada definitivamente, e um heliporto que nunca acolheu nenhum helicóptero.  Em 2010, esta betonização é posta em causa no balanço das inundações mortais que atingiram a ilha. Pouco importa, a política do desenvolvimento deu resultados, aparentemente. "Em 1986, a Madeira possuía o PIB mais baixo de Portugal. Quando me fui embora, era a segunda região mais rica", orgulha-se o antigo Presidente.

 

"Boom"

Porto da Cruz, 2 300 habitantes, é um dos emblemas desta metamorfose. Por volta de 2013, após anos de declínio, a aldeia apostou no turismo desportivo. "Foi um boom", comenta Duarte Fernandes, presidente da Junta de freguesia e farmacêutico. Cruzam-se vários jovens com estilo atlético a caminhar em direcção à praia, mas também grupos de sexagenários avançando com cuidado pela rua que leva ao engenho e à sua máquina a vapor, "a última da Europa ainda em funcionamento", herança de uma época em que a economia local assentava essencialmente na cultura da vinha e da cana-de-açúcar. A via rápida, que atravessa o topo da freguesia há cerca de vinte anos, deu o seu contributo. "Começámos a receber muitos mais visitantes e a fixar a população. Antes, muitos trabalhavam no Funchal e acabavam por aí se instalar. Hoje fazem a viagem de ida e volta", observa Duarte Fernandes.

Porto da Cruz, na costa norte da Madeira, tornou-se num destino popular para os amantes de desporto.
Porto da Cruz, na costa norte da Madeira, tornou-se num destino popular para os amantes de desporto. © François-Damien Bourgery / RFI

Sinal da sua vitalidade, a aldeia tem vários pousadas, hotéis, restaurantes, cinco escolas de surf, uma escola de parapente... "E funciona tudo o ano todo", explica Tomé Mendes, proprietário de uma destas pousadas, e de outra no Funchal. Depois de um início complicado, os seus estabelecimentos estão agora cheios o ano todo. Os clientes vêm principalmente da Alemanha, de Inglaterra, da França e de Holanda, na ordem. Idade média: 25-35 anos.

"Na minha opinião, o Porto da Cruz deve o seu sucesso à ampliação do aeroporto e à chegada de companhias low cost que permitiram trazer turistas mais jovens que vão para outros sítios, fora do Funchal", adianta Tomé Mendes. Ainda assim, Tomé Mendes admite que sem a via rápida que leva à capital regional em meia hora, nunca teria conseguido gerir os dois estabelecimentos.

 

Preocupações ambientais

Na Madeira, existe também quem se preocupe pelo ambiente, face a tais desenvolvimentos. Um dos motivos de preocupação: o projecto de alcatroamento de uma estrada em pleno coração da Laurisilva, a floresta de louros, existente há milhões de anos e classificada como património mundial natural da Unesco. "Uma enorme ameaça", considera Pedro Trindade, guia-acompanhante, pois levaria ao desaparecimento de quilómetros de urze, uma planta preciosa para a captação da água que se evapora do oceano. Alguns receiam também que o turismo de massas acabe por desfigurar a ilha. Alguns guias de montanha queixaram-se disso no ano passado, nas páginas do Diário de Noticias, denunciando o engarrafamento das vias mais populares, fáceis de acesso para os carros. 

11h45 no parque de estacionamento da Ponta de São Lourenço, um dos trilhos de caminha pedestre mais populares da Madeira.
11h45 no parque de estacionamento da Ponta de São Lourenço, um dos trilhos de caminha pedestre mais populares da Madeira. © François-Damien Bourgery / RFI

Já para não falar das toneladas de entulho, extraídas dos túneis, que os camiões despejam na costa e cujos impactos na qualidade da água são de temer. "Não houve nenhum estudo científico sobre o impacto ambiental de todas estas construções", adverte Rui Almeida. O antigo deputado ecologista da Assembleia da Madeira assume-se prudente: fora de questão de ser acusado de ser extremista ao denunciar abertamente o desenvolvimento da rede rodoviária. Mas o autarca teria preferido mais concertação no momento da sua elaboração. E suspeita que esta política rodoviária tenha por objectivo aumentar o número de turistas - a Madeira já acolhe um milhão e meio de turistas por ano. "Seria necessário interrogarmo-nos sobre a oferta que se pretende propor. Deve ser qualitativa ou quantitativa? Seria necessário definir limites, por que não instaurar uma taxa turística", sugere.

"Todas estas estradas foram feitas para os Madeirenses. Mas não vamos impedir os turistas de as usar", responde Pedro Fino, secretário regional do Equipamento e Infrastructuras no Governo local. Hoje, contam-se 600 quilómetros de estrada, financiadas a 80% pela União Europeia. As autoridades não pretendem, aliás, terminar por aqui. As próximas obras: tornar seguras as vias existentes e a instalação da 5G nos túneis, para estradas "mais inteligentes". 

 

Sem rancor 

Aconchegado numa esquina de Campanario, o café de Maria Fátima parece estar longe destas considerações tecnológicas. Com os seus lambris de madeira e os jogos de raspar pendurados perto da cafeteira, surge como um dos últimos vestígios da época em que chegar à Ribeira Brava a partir do Funchal obrigava a passar pela serra. Toda uma aventura. Pelo menos três horas a ziguezaguear entre o verde esmeralda das plantações de banana e o azul safira do oceano, passando junto aos carros estacionados na berma. E tudo isto sem direcção assistida nem ar condicionado. 

O café de Maria Fátima, na beira de uma estrada que costumava ser movimentada.
O café de Maria Fátima, na beira de uma estrada que costumava ser movimentada. © François-Damien Bourgery / RFI

Maria Fátima montou o negócio com o marido quando voltaram da Venezuela, há 34 anos. Rápidamente, o café ganhou a sua notoriedade. Fazia, dizia-se, as melhores sandes dos arredores. Com um parque de estacionamento adjacente, o local impunha-se como uma etapa natural na estrada sinuosa do fim-de-semana. "Há 30 anos, na mesma altura, abríamos das 6h às 3h da manhã e nunca esvaziava", conta a sexagenária, de pé atrás do balcão. 

A via rápida foi construída e, de repente, tudo mudou. Hoje, apenas alguns saudosistas se aventuram pela estrada "velha", ou turistas aventureiros que desejam ver algo mais para além dos túneis. Acabaram-se as sandes; os únicos clientes são os dos arredores que vêm beber café ou aperitivo. "Vendemos metade menos, mas é suficiente para viver. E esta via rápida dá muito jeito para ir até ao Funchal!" explica Maria Fátima, sem rancor, antes de servir os seus dois clientes. Um autocarro passa, apita duas vezes como forma de saudação e desaparece atrás da esquina.    

Financiado pela União Europeia. Os pontos de vista e opiniões expressos são da responsabilidade do(s) autor(es) e não reflectem necessariamente os da União Europeia ou da Agência de Execução relativa à Educação e à Cultura (EACEA). Nem a União Europeia nem a EACEA podem ser responsabilizadas pelos mesmos.
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