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Mar Verde

3° Episódio: Testemunho do PAIGC e consequências da Operação "Mar Verde"

No terceiro e último episódio da série da RFI consagrada à Operação Mar Verde acompanhamos o relato de Ana Maria Cabral, viúva de Amílcar Cabral, presente em Conacri na altura do ataque à delegação do PAIGC.Seguimos também o testemunho da retirada das tropas portuguesas com o comandante de mar e guerra Costa Correia.Abordamos, ainda, as consequências desta operação secreta com José Matos, co-autor de uma obra publicada este ano em Portugal sobre o caso.

Interior da sede do PAIGC em Bissau
Interior da sede do PAIGC em Bissau Miguel Martins/RFI
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Terminamos aqui a série de três episódios consagrados à Operação Mar Verde.

Uma programação especial que ocorre, também, após a publicação de dois novos livros em Portugal e em França sobre o caso, da autoria de José Matos e Mário Matos e Lemos e de Bilguissa Diallo, respectivamente.

Começámos por ver como os dissidentes da Guiné francófona se aliaram ao regime colonial português em Bissau para tentar precipitar o fim do regime de Sékou Touré e como o plano secreto foi preparado e executado há mais de meio século.

Destaque agora para o desfecho e as consequências desta operação lendária levada a cabo em Conacri a 22 de Novembro de 1970.

Na linha de mira de Lisboa estavam os apoios de que o PAIGC beneficiava na capital daquela que tinha sido no passado a Guiné francesa.

O Partido Africano para a independência da Guiné e Cabo Verde tinha, aí efectivamente, a sua base, em Conacri.

O testemunho de Ana Maria Cabral

Ana Maria Cabral, viúva de Amílcar Cabral, o líder do PAIGC, que viria a ser assassinado em Janeiro de 1973, viveu na primeira pessoa o ataque.

Ela admite ter escapado por um triz e revela-nos aqui um testemunho exclusivo sobre como tudo aconteceu.

Estivemos por um triz e só não morremos por sorte ! Estávamos a dormir e eu acordei com aquele barulho !  Fui acordar os meus filhos e tinham já bombardeado: atirado um obus para a nossa casa! 

"E o obus caiu na casa de banho. A casa toda tremeu! Então, portanto, estava eu sozinha em casa com os meus filhos. Só tive tempo… eles chamaram-me os camaradas, os guardas. Eles foram por trás e disseram “Apanhe os seus filhos e sai, sai, sai, sai, sai!” Saímos, andámos por ali pelo mato até de manhãzinha. Como a embaixada do Vietname ficava ali perto, alguns camaradas foram pedir à embaixada do Vietname, mas, depois, acabámos por… porque naquela altura havia ainda a União soviética e eles tinham uma enorme embaixada que chamavam de “Petit Moscou” [pequena Moscovo]. Acabámos por nos refugiar ali porque os vietnamitas, coitados, não podiam! Era uma coisa muito simples, a embaixada deles, não tinham possibilidades! Até ao regresso de Amílcar Cabral que nos tirou de lá. A nossa casa ficou completamente danificada! Houve muitos estragos ! Rebentaram, pelo menos, com a parte da frente da nossa casa. Ao lado ficava o secretariado. Era tudo a mesma coisa. Era só um prédio. Aquilo foi, mesmo… Nós não morremos por sorte! Eles bombardearam… se tivessem bombardeado mais para a frente tinham-nos apanhado no quarto! E então o obus, quando se reconstruiu a casa, o Amílcar pediu que deixassem aquele buraco que entrou na casa de banho como recordação do obus! Porque caiu mesmo ao lado do meu quarto!

Um dos principais alvos da operação lusa acaba por fracassar. Amílcar Cabral nem se encontrava em Conacri na altura! E, por isso, não foi apreendido como relata Ana Maria Cabral.

Ele não estava, ele estava na Europa. Nessa altura a Europa estava dividida: havia os países capitalistas e os países chamados “socialistas”. E ele estava num desses países a solicitar ajuda, ou o quê, porque nós não fabricávamos armas!

 Sékou Touré e Amílcar Cabral não foram neutralizados

As seis embarcações portuguesas deixam rapidamente Conacri sem conseguir derrubar Sékou Touré nem prender Amílcar Cabral.

O relato da retirada é-nos feito por Costa Correia, o comandante da Lancha de desembarque Montante, uma das seis embarcações portuguesas que protagonizaram a “Mar verde”.

Não tínhamos a consciência se havia ou não aviação militar. O facto é que houve, pelo menos, um voo de um dos aviões da Guiné Conacri que sobrevoou Conacri e disparou contra navios mercantes, um navio mercante, creio eu. Já estávamos nós a navegar e isso ocorreu. Podia, efectivamente, ser contra um dos navios “invasores”. Isso não aconteceu, não se sabe bem porquê. Dizem que os pilotos dos aviões ainda tinham pouco treino. Mas o facto é que houve, realmente, um sobrevoo. Talvez cerca das 10 da manhã, já estavam os navios em formação de retirada. Mas houve ainda um avião que sobrevoou Conacri e que disparou. Não se sabe bem como, nem porquê ? Contra um navio mercante e fez até alguns danos, segundo creio.”

Portugal recupera os seus presos em Conacri

Se falharam várias das metas definidas por Lisboa naquela operação obteve-se, porém, naquela noite a libertação dos presos portugueses, nas instalações do PAIGC em Conacri, como admite Ana Maria Cabral.

A única coisa que eles conseguiram foi libertar os prisioneiros portugueses. Tínhamos uma casa que ficava, assim numa colina. Como na Guiné praticamente não há montanhas a nossa gente chamava àquilo “A Montanha”. Mas aquilo era, mais uma colina do que uma montanha. Mas, enfim… pronto !

No entanto os presos portugueses soltos recebem instruções sobre a versão que podem contar. E isto por causa do carácter secreto da operação como testemunha, de novo, o comandante de mar e guerra luso Costa Correia.

Houve instruções para os próprios prisioneiros dizerem que tinham sido, eles mesmo, que tinham fugido da prisão. Era a versão oficial que eram obrigados a dar às famílias, etc. Que tinham fugido da prisão e que tinham chegado à fronteira. Evidentemente que ninguém acreditou nisso! E, naturalmente, com as declarações dos comandos africanos que ficaram prisioneiros [em Conacri] à Comissão de investigação da ONU que foi logo lá foram claras, dando os pormenores todos. E referindo que a operação tinha sido feita com os meios fornecidos por Portugal, como é evidente.”

Apesar das provas até hoje Portugal não admite a autoria da operação

 Portugal até hoje nunca admitiu ter sido o responsável pela operação “Mar Verde”. O comandante Costa Correia duvida que essa posição venha a ser alterada, mais de cinquenta anos após os acontecimentos.

Portugal formalmente duvido que vá tomar a iniciativa de dizer que “Sim, senhor, fomos nós”! Porque é despropositado. Se Portugal fosse interrogado formalmente por um organismo internacional sobre isso… naturalmente que até tinha que socorrer-se dos elementos publicados na própria Organização das Nações Unidas."

Trouxe elementos suficientes para se confirmar que Portugal tinha concebido a operação. E que a operação se não tinha tido mais sucesso foi por falha dos serviços de informações militares, a polícia política portuguesa: a Direcção Geral de segurança que, também, era conhecida por PIDE, o seu nome anterior.

"Que não teve capacidade suficiente para dar informações apropriadas que colassem à ponderação cuidada das vantagens e inconvenientes de uma operação daquele tipo. ”

Sékou Touré não caiu, pois, nesta intentona fomentada entre Lisboa e os opositores guineenses da FLNG. O homem forte de Conacri, o único dos antigos territórios franceses a ter dito “Não” no referendo de de Gaulle, precipitando a independência da República da Guiné, vai, mesmo, descartar qualquer compensação pelos estragos causados pela intervenção portuguesa de Novembro de 1970 como relatou ao comandante português Costa Correia um dos elementos da oposição guineense, da FLNG.

Sékou Touré aproveitou aquela circunstância e não só até para impedir uma eventual missão da ONU que tinha recebido a incumbência do Conselho de segurança de se dirigir à Guiné Conacri para estabelecer os valores das indemnizações a reclamar a Portugal por aquele ataque."

Sékou Touré disse, em carta ao secretário geral, que não desejava indemnizações nenhumas. O que ele desejava, sim, é que Portugal fosse obrigado a conceder a independência aos territórios portugueses todos!

"E, portanto, essa carta até nunca circulou muito em Portugal… O Hassan Assad, por acaso, em Paris deu-me conhecimento da existência dessa carta. Era o momento em que se dizia em Portugal, nos meios militares e políticos também, que Portugal deveria dizer sempre, oficialmente, que nunca tinha participado na operação, apesar de ter havido essa carta de Sékou Touré que não teve publicidade em Portugal praticamente nenhuma. ”

PAIGC adquire mais meios, Comité de descolonização vai ao terreno

Esta operação secreta, validada pelo general Spínola, governador da vizinha então Guiné portuguesa, e obviamente pelo regime de Marcello Caetano da altura, poderá ter permitido ao PAIGC obter maiores apoios para a sua luta contra o exército de Lisboa. De novo o testemunho de Ana Maria Cabral!

Há anos que o Cabral pedia nas suas visitas, nas suas conversas… eu assisti alguma vez, algumas vezes fui testemunha em Moscovo pedia-se mísseis e não sei quê. Mas, eles, os militares, ficavam, diante do mapa da Guiné com… “não sei quê, não sei quê”… mas quando foi do Sékou Touré… O Sékou Touré conseguiu que uma delegação da ONU fosse lá constatar porque eles [os portugueses e aliados] conseguiram destruir um dos palácios do Sékou Touré, só que ele não estava lá ! O objectivo era destruir também o regime de Sékou Touré, derrubar o presidente. Só que não conseguiram, de maneira que o

Sékou Touré fez muito barulho ! Teve-se de mandar uma delegação do Comité de descolonização. Agora tem graça que uma das pessoas que era membro dessa delegação era o Bouteflika, Abdelaziz Bouteflika.

..."Bouteflika que foi presidente da Argélia ainda há pouco tempo ! De maneira que ainda me lembro dele ainda jovem, extremamente jovem, estou a ver o rosto dele !”

O PAIGC vai intensificar a guerra com meios mais sofisticados, nomeadamente mísseis.

Lisboa recusa qualquer precedente negociando com o PAIGC

Lisboa ficará, ainda assim, numa aposta exclusiva na via militar para lidar com a luta de libertação do PAIGC.

José Matos é um dos autores do livro "Ataque a Conakry: história de um golpe falhado" publicado em Março de 2021 em Portugal pela Editora Fronteira do Caos.

O general Spínola a partir de 1970, com o resultado da operação “Mar Verde”, claramente vê-se que muda de opinião. Aliás o livro tem um capítulo sobre o pós-operação onde, claramente, há uma reunião do Conselho superior de defesa nacional, de 71, poucos meses depois da operação, em que, de facto se vê que há uma mudança de posição do general Spínola a esse nível. E depois o general Spínola tenta, em 1972, tenta, com a mediação do presidente Senghor, encontrar uma solução negociada para a Guiné. Essa possibilidade é recusada pelo Marcello Caetano, que era o chefe do governo, porque o Marcello Caetano achava que, de facto, que se fosse levado a cabo um processo negocial na Guiné isso punha em causa a presença de Portugal em Angola e em Moçambique. Abria um precedente! O Marcello Caetano, o chefe do governo, sempre se recusou a qualquer solução negociada com o PAIGC. E quando o general vem com essa proposta, de Bissau a Lisboa, falar com Marcello Caetano a recusa, de facto, acontece. E Marcello Caetano diz mesmo que (é uma frase famosa) que era preferível uma derrota militar com honra do que negociar com os terroristas. Portanto o general Spínola fica até chocado com essa afirmação do Marcello Caetano! 

Aí o general Spínola percebe, claramente, que não há solução política para a guerra e que a solução de Marcello Caetano é continuar a guerra !

O estratega da operação, o comandante Alpoim Calvão, e o governador da então Guiné portuguesa, o general Spínola, ajustam contas quanto aos desaires da operação, como nos relata, de novo, o comandante de mar e guerra Costa Correia.

No que respeita ao êxito principal da operação o comandante Calvão não ficou muito satisfeito porque a parte do golpe de Estado, que era a parte determinante para o processo todo, não se conseguiu realizar. E isso, naturalmente, foi uma decepção muito grande para ele. Para ele e, naturalmente, para o general Spínola. O general Spínola teve até algum confronto verbal com o próprio comandante Calvão acusando-o de não ter dado a importância suficiente ou prioritária ao golpe de Estado e de ter feito prevalecer a ideia do objectivo operacional ser mais a libertação dos prisioneiros. ”

Relutância dos Comandos africanos da “Guiné portuguesa”

Ainda no plano das consequências da operação “Mar Verde” o comandante português Costa Correia admite que era grande o cepticismo por parte dos comandos africanos da então Guiné portuguesa quanto às possibilidades de sucesso da mesma, e quanto ao respectivo impacto naquela que se viria a tornar a Guiné-Bissau.

Eu apercebi-me que os comandos africanos, das forças então portuguesas, não estavam tão solidamente convictos de que a operação lhes interessaria, a longo prazo. E que tinham riscos para os quais não estariam totalmente preparados. Mas foram convencidos a prosseguir a operação. Mas não se pode dizer que o entusiasmo fosse algo de realmente sólido! ”

FLNG crítica após a operação

O comandante de mar e guerra comenta também o desalento das forças da FLNG, da Guiné Conacri, que não conseguiram mudar o regime ao integrarem a operação.

No regresso confessaram que tinham ficado decepcionados com o apoio e a preparação da operação. Embora, por seu lado, também verificassem que não tinham tido recursos internos suficientes para os acompanharem naquela operação. Fiquei com os dados pessoais de Hassan Assad. Ele, com toda a franqueza, referiu que seria muito difícil, no caso do golpe de Estado ter tido sucesso, de manterem uma política sólida de afastamento do PAIGC. Porque ele não podia esquecer que estava num país africano, com uma independência recente, e que não podia, digamos assim, a nível da Organização da Unidade africana, trair as perspectivas anti-coloniais que deveriam formar e enformar, digamos assim, qualquer governo que saísse de lá. Portanto, por outro lado, sabia que não tinha recursos suficientes para obter o poder de imediato. Estava preocupado com o que poderia suceder. Também, aliás,

O próprio general Diallo estava amargurado, decepcionado com o facto de não ter estado, na ordem de operações, previsto que ele fizesse parte do grupo que iria procurar Sékou Touré e convidá-lo a sair do poder. Ele foi relegado a uma posição secundária de apenas participar no assalto a um dos quartéis.

Ele dizia “Eu, como candidato a presidente da república, deveria ter participado na operação. Ou, então, na operação que se dirigia à rádio com o fim de emitir uma mensagem ao povo guineense.”

A purga do regime de Conacri

Sékou Touré vai manter-se, pois, no poder e levar a cabo uma verdadeira purga contra quaisquer opositores que poderiam estar por detrás da chamada "Agressão portuguesa".

De novo José Matos !

O regime do presidente Sékou Touré foi um regime longo, foi um regime desde a independência, em 58, até 1984, quando o presidente Sékou Touré faleceu. Mas é, de facto, não tenho qualquer problema com a palavra, é uma ditadura sinistra ! E, de facto, aquilo que se passou a seguir à operação “Mar verde”, com perseguição de dissidentes, com mortes de dissidentes, com muita gente que foi lançada para a prisão… Estou-me, por exemplo, a lembrar do Arcebispo de Conacri que foi preso ! E até não tinha culpa nenhuma ! O Arcebispo não estava envolvido em conspiração nenhuma, mas teve o azar de os militares que iam à casa do Sékou Touré passarem em casa dele, por engano, não é ? Porque não sabiam onde é que era a casa do Sékou Touré ! E, portanto, passam lá e perguntam onde é que é ? E, como recebem a informação, mais tarde o pobre do Arcebispo foi também implicado na conspiração, foi preso e esteve vários anos preso nos anos 70 e, portanto, tudo isto foi muito triste o que aconteceu a seguir à operação.

De facto o nível de repressão que o regime exerceu nos anos seguintes foi terrível ! E mostra bem o que era o regime do presidente Sékou Touré!

Do outro lado da fronteira a guerra de libertação do PAIGC contra o exército português intensifica-se: "Nino" Vieira, em nome do PAIGC lê em 1973, unilateralmente em Madina do Boé a declaração de independência da Guiné-Bissau.

A Revolução dos Cravos, do ano seguinte em Lisboa, precipitará o reconhecimento da independência e a retirada lusa deste primeiro território africano a ser descolonizado por Portugal.

Praticamente 4 anos depois da operação secreta que tinha por nome de código "Mar Verde".

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