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Os silêncios e os gritos da guerra colonial

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A exposição “Recusar a Guerra Colonial”, que esteve patente na Casa de Portugal, em Paris, foi acompanhada por um colóquio com historiadores e testemunhos de um passado bem presente. Nesta reportagem, os testemunhos de um oficial de carreira desertor e apoiante dos movimentos independentistas, da filha de um antigo combatente que fixou em imagem os pesadelos da guerra e de investigadores que procuram dar luz a uma história silenciada.

Fotografia que ilustrou o cartaz da exposição "Refuser la guerre coloniale" a representar "O Salto", ou seja, a saída clandestina de Portugal rumo a França.
Fotografia que ilustrou o cartaz da exposição "Refuser la guerre coloniale" a representar "O Salto", ou seja, a saída clandestina de Portugal rumo a França. Fernando Cardeira
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Oiça a reportagem, ritmada pela música de intervenção da época, clicando na fotografia principal.

 

Fernando Cardeira era um oficial de carreira militar e com um grupo de oficiais e antigos alunos da Academia Militar desertou para a Suécia em 1970 a partir de onde lutou contra o regime fascista português. Decidiu declarar guerra à guerra através da deserção e do apoio aos povos que lutavam pela sua independência durante a guerra colonial.

Era um segundo passo que muitos desertores não davam. Repare: uma coisa é desertar, mas desertar e apoiar, digamos, a outra parte, apoiar os movimentos de libertação era um passo mais importante”, explica.

Na Academia Miliar, onde passou os primeiros quatro anos do curso de engenharia, Fernando Cardeira ouviu em primeira mão as atrocidades que se cometiam na guerra colonial. Os relatos começaram a moldar a sua consciencialização política que foi reforçada com a sua vivência posterior no meio universitário e com uma viagem de finalistas pela Europa que passou pelo Maio de 68 em França. Um dia decidiu abandonar a carreira militar e saiu do país.

Eles contavam, até com muito orgulho, os massacres todos. Mas eu quando digo massacres, era mesmo massacres. Era eles contarem como cortavam cabeças aos negros africanos. Nós ficámos muito chocados com isso naturalmente (…) Isso cria em nós um conhecimento em primeira mão do que era a violência da guerra em África”, recorda.

Durante a guerra colonial, o historiador Miguel Cardina calcula em cerca de 250 mil as pessoas que não fizeram a guerra, entre faltosos que não foram à inspecção, refractários que ainda foram à inspecção mas não à tropa e desertores. Em comum, tiveram um destino de emigração, virando as costas à ditadura e à guerra colonial, tendo alguns integrado redes de resistência ao fascismo.

Para Miguel Cardina, a recusa da guerra é também parte da história de uma guerra mais vasta e a memória colectiva da deserção continua a ser uma memória subalterna, com pouca inscrição pública e um pouco silenciada até porque o 25 de Abril de 1974 foi feito por militares que fizeram a guerra.

Só agora, recentemente, se tem começado a colocar no debate público aquilo que foi a experiência da deserção, do exílio e do modo como estas dezenas de milhares de pessoas fazem também parte da história da guerra, no fundo, da história da guerra que decidiram não combater”, descreve.

E se na memória colectiva sobressai a imagem de uma guerra politicamente derrotada com a ideia de ex-combatentes vítimas dos ventos da história e a memória da recusa da guerra atirada para um segundo plano, Miguel Cardina considera, por isso, que Portugal tem de descolonizar a sua própria história.

Portugal - e a sociedade portuguesa em geral - mantém ainda hoje um olhar benevolente em relação àquilo que foi a sua experiência colonial”, adverte.

A violência do colonialismo e da guerra também foi denunciada, a partir de meados dos anos 60, sob a forma de livros de fotografia impulsionados pelos movimentos independentistas, sublinha a investigadora Catarina Boeiro.

Há imagens que dão a ver as ideias e a ideologia que os movimentos imaginavam para os países independentes e socialistas que eles queriam instaurar. Ou seja, vemos muitas vezes imagens de escolas, livros, mulheres armadas e completamente emancipadas que tinham um papel tão importante nos homens na luta”, avança, destacando também que há fotografias que “denunciavam a violência imposta a estas populações pelo colonialismo português” e que descrevem “o dia-a-dia dos guerrilheiros e não tanto as frentes de combate”.

Cinquenta anos depois, a violência da guerra colonial ainda atormenta as noites de Delfim Afonso Crespo. A sua filha, Sylvie Crespo, decidiu tentar fixar em imagem um trauma invisível através de um projecto fotográfico que acordou fantasmas mas também está a funcionar como uma terapia através da libertação da palavra e da memória.

Quando uma pessoa sofreu um dano físico, é visível, mas o trauma psicológico é mais complicado. Tudo partiu de um estudo de imagens de arquivo para compreender como é que o corpo do soldado foi utilizado pelas forças armadas e transformou esse corpo em arma de guerra”, conta.

A maioria das fotografias de Sylvie Crespo são a cor porque a história não é a preto e branco e porque se trata de um passado ainda muito presente. Uma história com milhares de histórias para contar e que esteve em destaque na exposição “Recusar a Guerra Colonial”, em Paris.

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